Cascavel - A cozinha é o útero da casa, porque nutre de cuidado e de afeto os rebentos do lar. Rubem Alves, o escritor brasileiro, evidencia esse lugar em que se desenvolve a arquitetura silenciosa do cuidado, que quase sempre tem nome de mulher (porque socialmente feminino) e codinome de mãe. Até porque o princípio jurídico do cuidado, sob o melhor interesse da criança, muitas vezes desconsidera as lacunas institucionais e as desigualdades de gênero no exercício dessa atividade.
Que por acaso é invisível até que seja punida, por ter se tornado problema: quando falta, culpam a mãe enquanto alvo imediato, deixando em segundo plano o pai ou mesmo o Estado. De revés, se sobra cuidado, ela é criminalizada, apesar da institucionalização do desamparo, seja porque denunciou quem deveria proteger, seja porque supostamente violou a regra para que pudesse proteger.
Nesse sentido, a mãe de uma criança celíaca recentemente foi tratada como transgressora porque teria exercido um cuidado que não foi reconhecido como legítimo. Especialmente porque ao lado do cuidado exigido das mulheres, paradoxalmente, requer-se a passividade, logo, o questionamento torna-se problemático. Devem obedecer às regras institucionais, mesmo quando negam dignidade aos filhos, porque o cuidado deve ser um serviço regulado e não um direito compartilhado, e, além disso, o enfrentamento expõe a negligência institucional e isso incomoda.
A culpa na ausência fica latente no caso da adolescente que engravidou a partir de uma “brincadeira” de “roleta russa de sexo”, que escancarou o abandono institucional que envolve infância, cuidado e sexualidade no Brasil. E o peso recairá nos ombros de quem “se deixou engravidar”, seja pelo impacto da maternidade, seja pelo julgamento moral. O próprio sistema que deveria proteger silencia e culpabiliza, porque sexualidade não é tema infanto-juvenil (apesar dos dados cotidianos alarmantes de abuso infantil e pedofilia).
A educação, inclusive sexual, é política pública que protege corpos e desconstrói violências, devendo ser exercida em coletividade, sob pena de recair em julgamentos morais, omissões institucionais e, por que não, punições maternas. O cuidado está na cozinha, mas também nas salas de aula e no ambiente público, exceto nos gabinetes em que se formulam leis ou se definem orçamentos, porque majoritariamente masculinos.
Se os passos não se modificam, o caminho é o do privilégio feminino do cuidado (não no sentido do benefício, mas de obrigação muitas vezes exercida de maneira solitária) diante de um Estado que pouco provê alimentação especial, não educa para a sexualidade, não protege meninas, mas está pronto para punir mães cuidadoras. Assim, do útero da casa, resta às mulheres parir o cuidado até que a lei o transforme em delito.
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito