Opinião

Coluna Direito da Família

Cascavel e Paraná - Não só o direito, mas também a ciência costuma fechar os olhos quando a dor tem gênero. Ambos tratam do masculino como modelo-padrão. Aparentemente, a ciência é um ambiente neutro e higienizado o suficiente em relação às questões sociais; ainda que trate dos mesmos, se coloca em uma posição de distanciamento do objeto.

Isso se percebe no caso da pesquisa com o fármaco Talidomida, no século passado, que ocasionou milhares de nascimentos com má formação porque os testes eram feitos em homens (corpo-padrão), mas usados em mulheres gestantes. Outro caso é o do cinto de segurança, que, a partir de suposta neutralidade técnica, ignorou corpos femininos e gestantes nos testes de impacto (os bonecos tinham padrão de massa corporal, musculatura e centro de gravidade masculino), o que amplia os riscos para elas em caso de colisão.

Ainda hoje, existem mais pesquisas para calvície (pensando na estética masculina) do que sobre endometriose (mesmo esta causando dores incapacitantes). A omissão reiterada não é ignorância, é o que se chama de epistemologia, ou seja, a produção do conhecimento por e para um grupo de indivíduos específico, tido como o padrão universal – ainda que as exceções perfaçam a maioria da humanidade. Uma ciência que não pensa em quem menstrua, engravida, amamenta ou cuida não traz resultados neutros, mas perigosos.

O Direito e a Neutralidade

O direito, enquanto ciência, não foge do banco dos réus. O raciocínio da neutralidade é o que nega o reconhecimento de violência obstétrica como violação de direitos humanos, que resiste em aceitar o abandono paterno como forma de violência intrafamiliar e que ignora discrepâncias do cuidado na carreira acadêmica, por exemplo, o que perpetua desigualdades.

Há, assim, em alguns casos a preservação da forma, em detrimento da função, como ocorre com a função parental, quando da exigência de manutenção do nome paterno, enquanto filiação honorífica, a qual nada trata sobre o cuidado. Isso justifica os pedidos judiciais de anulação de paternidade requeridos por filhos de criminosos notórios, em que a resistência pela manutenção do laço simbólico a partir do nome é extremamente pesado, do ponto de vista afetivo e social.

A Visibilidade do Cuidado

Nesse mesmo sentido, movimentos sociais exigem o reconhecimento normativo do cuidado nos ambientes laborais e acadêmicos. Assim, foi um avanço a lei 15.124/2025 que proibiu a discriminação contra estudantes e pesquisadoras em processos seletivos de bolsa, mas sua ambição transformativa ainda é limitada por não considerar condições efetivas de permanência nem discutir políticas de cuidado, porque isso mexeria com pilares sociais como remuneração, contribuição social, aposentadoria e licença para a atividade do cuidado.

Então, esse tópico fica varrido para debaixo do tapete, apesar da economia não funcionar sem pessoas cuidadas e saudáveis. A visibilidade do tecido invisível que sustenta a sociedade traria à baila a necessidade da revisão do sujeito de direito, o qual será vulnerável em algum momento, e da resistência a tratar a interdependência enquanto condição humana, porque o sujeito autossuficiente é um mito. Falar de cuidado é falar de redistribuição de poder, de tempo, de riqueza e de escuta. É por isso que causa tanto incômodo — e é exatamente por isso que é urgente. O que chamam de neutralidade é só o eco do mesmo corpo falando consigo. O cuidado, invisível, segue segurando o que não cabe nos seus cálculos.

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em direito