Opinião

Cicatrizes invisíveis

Sob o pretexto de manter o clã forte, os vulneráveis costumeiramente eram excluídos, perdendo seus direitos, inclusive à vida. Mesmo as relações de parentesco não se pautavam no cuidado e o afeto se resumia às “danças de acasalamento” para o cortejo pré-núpcias. No que diz respeito ao direito, não deveria haver tutela do amor, enquanto sentimento, pois estava fora dos limites jurídicos. Inclusive, os aspectos subjetivos do indivíduo só passaram a ser considerados com o desenvolvimento da psicologia, algo que aconteceu na história mais próxima.

Embora o afeto tenha ganhado um patamar jurídico mais recentemente, sabe-se que o cuidado esteve presente desde os tempos longevos, especialmente pelo papel social desempenhado maciçamente pelas mulheres. Ao mesmo tempo em que se quebraram paradigmas nas relações familiares, definindo o afeto como valor jurídico, para além do sentimento, mas pela conduta de assistência e cuidados, essa mesma mulher foi absorvida pelo mercado de trabalho. A quem restou o cuidado?

Se fosse pela igualdade nas relações, certamente a carga deveria ser reequilibrada pelos demais membros familiares, o que na prática pouco aconteceu. A legislação, portanto, impõe à família o dever de cuidar dos vulneráveis, seja os pais, pelos filhos menores, seja pelos filhos, dos pais idosos. Mesmo com a falta de estrutura, dinheiro e disponibilidade à entidade familiar, não há isenção do dever de cuidado, em decorrência da solidariedade e do respeito à dignidade humana.

As relações familiares, principalmente entre pais e filhos, trazem consigo direitos e deveres que ensejam segurança, não só material, mas também imaterial, de modo que deve haver o alimento para o corpo, mas também para a alma. A falta de qualquer deles pode incidir em responsabilização por omissão em um dever, seja pelo abandono material, seja pelo abandono afetivo. Para além de poder configurar um crime, também pode custar ao bolso de quem abandona.

Diferem, portanto, os cuidados materiais e imateriais, devendo ambos estar presentes. Assim, mesmo que haja prestação de pensão alimentícia, é possível a configuração do abandono afetivo, pela ausência de amor. Não se quer obrigar alguém a amar, mas definir que as relações geram responsabilidades e obrigações e que seu descumprimento pode incorrer em uma punição, diante da lesão à dignidade pela rejeição.

Comumente, o abandono se dá do pai em relação ao filho menor, quando o homem decide retirar a prole de sua vida e de sua responsabilidade, quer pela construção de uma nova família, quer pelo mero descaso. Contudo, é possível que haja o abandono inverso, quando os filhos maiores abandonam afetivamente os pais idosos, pela omissão no dever de cuidado. Como se fossem “coisas obsoletas”, os idosos acabam deixados à própria sorte por filhos que se revezam no suposto “fardo” do cuidado.

Quando essa dificuldade no cuidado decorre da falta de estrutura familiar, não se impede que o cuidado ocorra em um abrigo. Isso, por si, não é errado, porém é imprescindível a presença (pelas visitas, pelas diversas formas de comunicação, pelo carinho). O que não pode é deixar uma alma agonizando no terror da solidão e do descaso a quem tanto se partilhou amor.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas