Opinião

A mão invisível que prepara o jantar

O Direito insiste em tratar o tempo como se fosse linear, previsível e igual para todos. Mas o tempo do cuidado é outro. É um tempo que se dilata nas madrugadas insones com filhos pequenos, que se fragmenta entre tarefas domésticas, reuniões escolares e responsabilidades invisíveis. Um tempo que escorre, distorcido, como os relógios derretendo nas telas de Salvador Dalí – as horas de quem cuida não têm contornos firmes. Esticam-se em noites mal dormidas, evaporam-se em tarefas repetitivas, acumulam-se em jornadas múltiplas. O sistema jurídico, no entanto, trata esse tempo como se não existisse.

Apesar da existência de uma Política Nacional de Cuidados – prevista no papel – e que dá materialidade a uma previsão constitucional de corresponsabilidade de cuidado entre Estado, família e sociedade, a aplicação do Direito ainda ignora essa dimensão que não cabe em planilhas, sentenças ou cálculos. Quem cuida paga com o próprio tempo e, não raro, deixa de lado o autocuidado, ainda que esta seja uma dimensão essencial do direito ao cuidado.

Para além de um marketing de “skin care”, o autocuidado diz respeito à saúde física e mental de quem cuida e que sua ausência perpetua a lógica de exaustão e sobrecarga, com raras compensações. Se, na condição humana proposta pela filósofa Hannah Arendt, o labor representa a reprodução da vida e o trabalho a construção do mundo, a divisão sexual do trabalho condenou historicamente as mulheres ao ciclo interminável do labor enquanto reservou aos homens o lugar do trabalho reconhecido, produtivo e socialmente legitimado, cuja obra se perpetua historicamente.

Ainda que não remunerada, essa atividade tem valor econômico: segundo a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), ela equivale a quase 25% do PIB em alguns países da América Latina se fosse remunerada. É o lado invisível da economia que não produz lucro, não acumula capital e não gera títulos de propriedade para elas, mas essencialmente para eles, na constância de um casamento, porque o cuidado sustenta as atividades econômicas (o que foi completamente ignorado por Adam Smith – o pai da economia – quando do seu questionamento sobre como o jantar chega até à mesa: existe também a mão invisível de quem prepara, serve e limpa).

Ainda que não seja gerador direto de direitos econômicos, existem mecanismos (bem tímidos) de reequilíbrio financeiro no sistema jurídico brasileiro, como a pensão compensatória ou o pagamento do capital investido na maternidade no cálculo de pensão para menores.

Ambos não estão expressamente previstos na legislação, o que pode permitir a perpetuação da desproteção da autonomia financeira feminina, especialmente com o fim da relação conjugal. Há projetos de lei tramitando, algumas discussões acadêmicas e poucos precedentes judiciais. Menos ainda se fala sobre outros espectros do cuidado para além do infantil, deve-se considerar ainda o cuidado com idosos, deficientes ou doentes, cuja proteção jurídica é ainda menor – especialmente da seguridade social. O reconhecimento ainda é recalcitrante, porque o trabalho doméstico segue tratado como dever moral e manifestação de afeto.

Virginia Woolf, escritora britânica, já dizia que uma mulher precisa de um teto todo seu e algum dinheiro no bolso para escrever ficção. Para viver dignamente, para criar filhos com segurança, precisa de mais: precisa de tempo, saúde mental e alguma justiça material, mas no Brasil, seguimos medindo mal o trabalho do cuidado – ou fingindo que não há o que medir. Enquanto o Direito continuar a medir o tempo com réguas tortas, as horas das mulheres continuarão escorrendo como os relógios de Dalí: deformadas, desvalorizadas e fora da história oficial. 

Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito