Como afirmei em artigo publicado no GLOBO em 20/12/2015, não compartilho a tese de que o impeachment da presidente Dilma seja um fator a abalar a democracia no Brasil. Mesmo admitido pelo Senado, com características de ?voto de desconfiança?, ele vem precedido por uma sequência de fatores que atrofiaram a prática representativa. Não obstante, o atual afastamento da presidente traz consigo uma série de paradoxos que, mesmo insuficiente para ser qualificado como ?golpe?, peca pela incapacidade da oposição de formular uma narrativa convincente.
Não é crível supor que um presidente que contasse com um mínimo de apoio parlamentar pudesse ser afastado, provisória ou definitivamente, por desrespeitar a Lei Fiscal, até porque austeridade não é um valor em nossa cultura política. Há, pelo menos, três paradoxos nesse processo que merecem considerações.
O primeiro deles é o caráter implicitamente retroativo do impeachment. Em 2005, havia elementos jurídicos e políticos para o impeachment do presidente Lula. No bojo do mensalão, estava presente o fato de Duda Mendonça ter recebido pagamentos no exterior. Por conta da alta popularidade de Lula, a oposição apostou no pleito eleitoral como solução. Ocorre que o boom das commodities fez com que o governo pudesse contar com receitas capazes de promover uma ascensão social artificial e sofisticar as relações espúrias entre Estado, partidos e setor privado. O sucesso do modelo, chamado de lulopetismo, foi tamanho que permitiu não só a reeleição de Lula, mas as duas eleições de Dilma. A mudança dos ventos na economia, a má gestão econômica e a incapacidade da presidente de manter uma coalizão contribuíram para o esgotamento deste modelo.
O segundo paradoxo consiste na incapacidade da oposição, e principalmente do PSDB, de cumprir seu papel institucional representando a parcela do eleitorado e da sociedade que não elegeu o modelo lulopetista. A oposição foi incapaz de denunciar a inconsistência e a superficialidade da ascensão social promovida através de uma dinâmica basicamente extrativista.
Por fim, o desmantelamento dos partidos políticos possibilitou a chegada à presidência da Câmara de uma figura do baixo clero como Eduardo Cunha, que, para ter uma sobrevida política, acatou e liderou um processo de impeachment com bases jurídicas extremamente frágeis, amputando a possibilidade de fatos mais graves serem incluídos neste.
A constante judicialização dos atos legislativos, somada a um Congresso majoritariamente conservador e clientelista, impediu a construção de uma narrativa que desse corpo ao impeachment. Limitou-se a um debate contábil, cujos fundamentos não são consensuais nem entre os especialistas. Embora isso não destitua a legalidade do impeachment, principalmente diante da ausência de condições mínimas de governabilidade, os paradoxos citados podem alimentar o clima de instabilidade para o governo Temer.
Gustavo Müller é professor de Ciência Política da Universidade Federal de Santa Maria