Cotidiano

A nova luta: em busca da reintegração de posse de áreas invadidas

Estado acumula R$ 200 mi em multa; audiência quer intervenção federal

A nova luta: em busca da reintegração de posse de áreas invadidas

Reportagem: Juliet Manfrin 

Cascavel – Os rastros das invasões de áreas se confundem com a própria história do oeste do Paraná. Tida como o centro nevrálgico de ocupações, a região convive com elas há quase quatro décadas, intercalando momentos de tensão com períodos de aparente calmaria. O assunto foi tema de centenas de encontros na Amop (Associação dos Municípios do Oeste do Paraná) nesses 50 anos que ela existe, mas ficou mais frequente e preocupante a partir dos anos de 1980. De lá para cá houve novas invasões, que até hoje seguem como um imenso desafio.

Para quem vive nessa história, ela jamais vai cicatrizar. Adriana Andrade mora em Quedas do Iguaçu e sua família viu o pedaço se chão ser violentamente tomado por um grupo armado. “Eram em torno de 400 homens armados… arrombaram as portas, meu irmão, minha cunhada e o filho de quatro anos estavam dormindo. Pegaram meu sobrinho, colocaram armas em sua cabeça e disseram que, em qualquer reação, atirariam contra a criança… Mataram os animais só para os verem morrer… destruíram a casa. Liberaram minha família horas depois da invasão, sem roupas e a pé”, contou, em lágrimas.

Quedas do Iguaçu é hoje o município com a maior área invadida em todo o Paraná e uma das maiores do Brasil, considerada um barril de pólvora.

Adriana não está sozinha nesse drama. Por todo o Estado há 163 áreas invadidas e com determinação de reintegração judicial, mas poucas ordens foram cumpridas, nenhuma daquelas tida como campo minado, como é o caso de Quedas.

Adriana e a família jamais se recompuseram emocional e financeiramente. Quinze anos, 4 meses e 13 dias após o ocorrido, ela apela: “Socorro, socorro, mil vezes socorro… Precisamos que nos socorram. Não temos mais forças nem recursos para lutarmos sozinhos”.

“Até carta do Vaticano recebi”, revela juiz

Apesar de as invasões terem se reduzido nos últimos anos, o desespero de quem tem a área ocupada é pela impotência.

O diagnóstico dessa impotência não vem apenas dos produtores rurais, mas de quem conheceu a base do iceberg. O juiz Leonardo Ribas Tavares foi titular em Quedas do Iguaçu quando ocorreram as maiores invasões. Hoje lotado em Cascavel, ele relata o que viveu naquela comarca.

Concessor de várias liminares para a reintegração de posse, nunca as viu cumpridas. Ele conta que, nos anos 2000, o então governador – ele não cita nome, mas era Roberto Requião – informou que três áreas teriam a reintegração cumprida pela Polícia Militar. Tratavam-se de duas invadidas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra) e outra de um grupo dissidente do MST. Um forte aparato de segurança foi montado mas no último momento só uma área seria desocupada, justamente a que tinha os dissidentes. “Quando questionei o coronel por que não estavam cumprindo as outras reintegrações, ele informou que a ordem tinha vindo de cima”. Ou seja, do governador.

Imediatamente o juiz revogou as três liminares sob a alegação de que elas não estavam ocorrendo de forma isonômica nem imparcial. Foi questionado pelo governo sobre sua decisão, manifestou seus argumentos, e teve o telefone desligado na sua cara.

Tempos mais tarde, o juiz recebeu a visita de uma comitiva presidencial de Brasília. Na época, o presidente era Luiz Inácio Lula da Silva. Após muito rodeio, recebeu o pedido para que liberasse membros do MST que haviam sido presos por roubo, furto e outros crimes. Ele não cedeu, nem os apelos. “Até carta do Vaticano recebi para que os libertasse”, contou.

Ordens judiciais devem ser cumpridas

A inércia do atual governo desespera as famílias, que pedem o cumprimento das ordens judiciais. “Como o próprio nome sugere, é uma ordem, precisa ser cumprida”, reforça Leonardo Ribas Tavares.

A audiência pública realizada ontem em Cascavel, chamada pelo deputado estadual Coronel Lee, aprovada pela Alep (Assembleia Legislativa do Paraná), soa como um sinal de esperança.

Ali estavam comitivas de Guaíra, de Terra Roxa, Guaraniaçu, Quedas do Iguaçu, Santa Helena, Assis Chateaubriand, um total de 400 pessoas que conviveram ou que convivem com as ameaças à propriedade. “Não somos contrários à reforma agrária, ela precisa ser feita, mas de forma justa, a quem realmente tem ligação com a terra. Nas áreas invadidas pela região são inúmeros os casos de pessoas que jamais viveram no meio rural (…) 85% das nossas propriedades são áreas de até 50 hectares e produtivas”, afirma o representante do Núcleo Regional dos Sindicatos Rurais Patronais do Oeste, Paulo Orso, que citou um dado alarmante: o não cumprimento das reintegrações já soma mais de R$ 200 milhões em multas ao Estado.

O coronel Lee diz que o problema afeta inclusive quem já foi do MST: “Existem pessoas que integravam o MST e agora são vítimas dessa organização criminosa. Há fila de pessoas no gabinete que nos relatam isso. O MST se desvirtuou e é um braço armado do Lula, do PT, da esquerda. Não por acaso em algumas áreas há forte aparato de armas, criminosos foragidos e ninguém de fora entra”.

A realidade dos municípios onde há áreas invadidas é difícil, reforça o presidente da Caciopar, Alci Rotta. Hoje as condições mais críticas estão em Guaíra, Terra Roxa, Santa Helena e Laranjeiras do Sul – essas com ocupações indígenas -, Quedas do Iguaçu, Cascavel e Catanduvas. “Há desvalorização dos imóveis, ninguém quer investir no comércio, não há segurança jurídica”, relata Rotta.

Em Quedas a população já teve de conviver até com toque de recolher. “O comércio tinha hora para abrir, para fechar, as pessoas vivem com medo. Não suportamos mais isso. Amamos a nossa cidade, mas precisamos de ajuda (…) sei que mais uma vez vou sofrer ameaças por isso, mas preciso falar, precisamos enfrentar”, acrescenta Adriana Andrade.

CPI para responsabilizar omissões

A ajuda chega em forma de articulação política. Um relatório elaborado na audiência pública segue para a Alep, o Estado e a União. Uma nova CPI será proposta na Assembleia e o deputado Coronel Lee pretende presidi-la. O objetivo é responsabilizar quem legalmente deveria ter cumprido as ordens judiciais e não o fez.

Lee espera o envolvimento dos municípios e de entidades de classe. “Quando há invasões e determinações legais não cumpridas acaba por estimular novas invasões. Hoje é possível fazer essas reintegrações, falta só vontade política”.

Lee sugeriu que os autores de processos peçam a seus advogados que Estado, Sesp (Secretaria de Segurança Pública) e Comando Geral da Polícia Militar sejam notificados novamente para o cumprimento das ordens de reintegração. Já o juiz Rosaldo Pacagnan sugere que as ações sejam reforçadas com pedido de intervenção federal contra o Estado. Hoje já há dois processos que podem culminar com a intervenção no Paraná, segundo a DPU (Defensoria Pública da União).

A Sesp diz que as reintegrações são feitas, que há um cronograma, mas que não pode ser divulgado por questões de segurança.