Cruzamento de dados oficiais do Ministério do Desenvolvimento Social e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indica que ao menos 1,4 milhão de famílias omitem o cônjuge (marido ou mulher) para receber dinheiro do Bolsa Família. A estimativa é conservadora e foi feita pela empresa DataBrasil a pedido do site Poder360. Considera que todas as casas monoparentais do Brasil são elegíveis ao programa social do governo. É provável que o número de fraudes desse tipo seja muito maior do que é possível estimar.
Essa manobra de omitir uma das partes da família pode ser usada, por exemplo, quando o pai de uma criança tem emprego formal ou alguma fonte de renda que impossibilite sua mulher de receber o Bolsa Família. Muitas pessoas escondem o vínculo para conseguir o benefício, burlando as regras do programa.
Para se chegar ao número geral de possíveis fraudes, os dados foram analisados cidade a cidade. Por exemplo, em Guaribas (PI), há 151 domicílios monoparentais, de acordo com o Censo (estimativa máxima), e 617 famílias que declararam ter essa composição familiar no Bolsa Família. Ou seja, há 466 famílias que provavelmente estão omitindo sua real composição familiar ao governo no município em questão. Os dados sobre famílias monoparentais, para que o levantamento pudesse ser atualizado, foram obtidos via Lei de Acesso à Informação. As informações são referentes a março de 2025.
Quem tem direito
Uma família é elegível para receber o novo Bolsa Família quando tem renda de até R$ 218 por pessoa, segundo a lei 14.601/2023, que instituiu o programa. Omitir informações relevantes ao CadÚnico é fraude ideológica. Só que essas fraudes muitas vezes não são descobertas e o benefício segue sendo pago por tempo indeterminado, segundo a nota técnica da DataBrasil.
Outra possibilidade de fraude é quando um integrante da família omite o cônjuge para receber duas vezes o benefício. Por exemplo: um pai e uma mãe moram no mesmo endereço. A mãe diz que vive com o filho e está em situação de vulnerabilidade social e o pai declara ao governo que mora sozinho e também não consegue se manter, declarando-se como família unipessoal. O endereço de um dos cônjuges também pode ser forjado.
Segundo Carla Beni, professora da FGV (Fundação Getulio Vargas), não é possível em uma mesma casa, com uma mesma família, duas pessoas receberem o Bolsa Família. “Se isso acontece, é uma fraude por falta de fiscalização”, diz a pesquisadora, que estuda o programa social. Beni diz que há uma quantidade muito grande de residências no Brasil que não têm CEP, principalmente em comunidades mais pobres. Esse fator seria um dos maiores problemas para se mapear fraudes de omissão de cônjuge.
“O que é preciso fazer é um cruzamento por CPF. Aí é possível descobrir onde é que está o problema ou eventualmente a fraude que possa ter ocorrido”, declara. Apesar das ponderações sobre as fraudes, Carla Beni diz que o programa funciona e é importante para a macroeconomia do país.
38% das cidades com omissões
Das 5.571 localidades brasileiras, 2.134 têm pelo menos uma família omitindo marido ou mulher para receber dinheiro do Bolsa Família.
O Ministério do Desenvolvimento Social informou que 11,3 milhões das 20,5 milhões de famílias beneficiárias do Bolsa Família em março eram monoparentais. No Brasil como um todo, há 15,1 milhões de domicílios com estrutura monoparental, segundo estimativa feita a partir do Censo. Os dados mostram que 74,9% das famílias monoparentais estão no Bolsa Família, contra 25,3% da população em geral.
Essa informação – analisada de forma macro – pode até causar desconfiança, mas não permite cravar a existência de fraudes por si só. Isso porque não é possível saber com exatidão o percentual de pessoas em situação de vulnerabilidade entre o grupo de monoparentais. Para se chegar à estimativa apresentada no início desta reportagem (1,4 milhão de fraudes), foram analisados os microdados: foram isolados os números de domicílios e famílias monoparentais no Bolsa Família em cada uma das 5.571 localidades brasileiras (5.569 cidades + Brasília e Fernando de Noronha). Dessa forma, foi possível identificar as disparidades, que são mais comuns em pequenas cidades, principalmente no Norte e no Nordeste.
Gasto anual com omissões
Essas 1,4 milhão de famílias que provavelmente estão omitindo seus cônjuges custam mensalmente ao Bolsa Família R$ 926 milhões. No ano, R$ 11,1 bilhões. Esse valor gasto com possíveis fraudes poderia ser realocado, por exemplo, para famílias que possam realmente precisar do benefício. Daria também para ser usado no custeio de outro programa social ou até mesmo para reduzir o déficit.
O governo tem tecnologia para descobrir pelo menos uma parte dessas omissões. Poderia, por exemplo, cruzar sua base de dados do BCP (Benefício de Prestação Continuada), do Pé-de-Meia e do próprio Bolsa Família para descobrir facilmente inconsistências e investigar mais a fundo alguns cadastros. Outra forma de encontrar fraudes é intensificar as visitas presenciais onde há indícios evidentes de irregularidades, como nas cidades citadas nesta reportagem.
De 2024 até março de 2025, o ministério informou ao Poder360 que só 1.191.049 famílias tiveram a inclusão ou a atualização cadastral realizada em seus domicílios. Essa é uma forma de fiscalização mais eficiente, mesmo que também possa ter falhas.
Culpa das cidades
Em resposta à reportagem, o Ministério do Desenvolvimento Social afirmou que a “competência para as operações de cadastramento das famílias é dos municípios que aderiram ao Cadastro Único”. Segundo o órgão, cabe às cidades “inserir e manter atualizadas as informações de famílias de baixa renda em todo território nacional”.
Governo tentou negar dados
Para que o levantamento pudesse ser atualizado, o site Poder360 fez um pedido de informação ao Ministério do Desenvolvimento Social em 9 de março de 2025. O governo negou a informação pela primeira vez em 10 de abril de 2025, depois de um pedido de prorrogação, alegando “trabalho adicional”. Foi registrado, então, um recurso em 1ª instância, negado em 22 de abril pela ouvidora-geral Eliana Pinto. Ela disse que a área técnica do ministério encontrava-se ocupada com o “aperfeiçoamento do novo sistema Cadastro Único”. O site entrou com um novo recurso, em 2ª instância. Esse pedido para liberação dos dados também foi negado, dessa vez pelo próprio ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, em 28 de abril, novamente falando em “trabalho adicional”. A solicitação só foi atendida depois de chegar à CGU (Controladoria Geral da União), que determinou o envio dos dados, que ficam também disponíveis na base de pedidos e respostas da LAI.