RIO – Iara Rennó queria fazer um disco ? seu último álbum então era ?Iara?, de 2013. Tinha um punhado de canções novas, a sugestão de Negro Leo (?Ele e Ava foram meus conselheiros?) para que Curumin fosse produtor, um trio azeitado de formação inusitada (guitarra, bateria e clarone) que ela criara e com o qual vinha tocando, o interesse da gravadora Yb em lançar… O necessário, portanto, para fazer o tal disco. Iara, porém, mudou de ideia. Desistiu? Não, desdobrou o álbum e desdobrou-se em duas, complementares: ?Arco? e ?Flecha? (Yb/ Circus), que chegam às plataformas digitais no próximo dia 10.
? Quando vi o que tinha, decidi: ?Vou juntar todo mundo e ver o que dá? ? conta Iara. ? Chamei todo mundo pra um ensaio. Estávamos eu, Negro Leo, Curumin, (o guitarrista) Gustavo Cabelo e as meninas (a baterista Mariá Portugal e a claronista Maria Beraldo Bastos). Tocamos meia dúzia de músicas, gravei no celular. Quando fui para casa, ouvindo, saquei que não ia dar pra juntar tudo, ficava sem pé nem cabeça, sem uma linha, uma sonoridade. Porque tinha umas músicas que tinham uma característica X e outras eram Y.
X virou um disco, Y outro. Como ela descreve, um yin, outro yang; um noite outro dia; um côncavo, outro convexo; um noite, outro dia; um pra fora, outro pra dentro. Complementares, porém. Um com a tal banda feminina de formação inusitada, com uma sonoridade de mais arestas. Outro mais redondo, de apelo mais direto, com a banda formada por Curumin (bateria, teclado, MPC), Maurício Badé (percussão), Lucas Martins (baixo e violão), Gustavo Cabelo (guitarra), Maurício Fleury (teclados), Daniel Gralha (trompete e fluguelhorn) e Cuca Ferreira (sax barítono).
? Estava pensando nessas dualidades, numa forma de simbolizá-la, até que Gustavo Cabelo (namorado da cantora) batizou: ?Arco? e ?Flecha?. Era isso, porque tem uma simbologia milenar aí, é uma das primeiras armas feitas pelo homem. E um precisa do outro. A flecha, que é o objetivo, o direto, o reto, e o arco, que é o sensível, o que se curva, o que impulsiona ? avalia Iara.
POEMAS MUSICADOS
?Arco? traz em seu núcleo versões musicadas de seus poemas eróticos presentes no livro ?Língua brasa carne flor?, lançado no ano passado, como ?Mama-me?. Há também uma canção, ?Corpo presente?, feita sobre fragmentos de textos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.
? A temática sexual vinha do livro, estava debaixo da pele. Ela está concentrada no disco que tem o discurso mais subjetivo, mais letras minhas, voltado pra dentro, pro sujeito. E o sexo combinava com essa sonoridade mais chocante (do trio formado por ela, Mariá e Maria), com essa formação que te tira mais do lugar comum, te leva mais pros seus desejos, pro seu subconsciente. Essa pimenta já estava no nosso encontro original (elas se juntaram para tocar as músicas do espetáculo ?Macunaíma Ópera Tupi?, de Iara). Porque ?Macunaíma? é supersexual.
?Flecha?, por outro lado, trata do que Iara chama de ?discurso para fora?. Isso inclui o problema político-ambiental da água em São Paulo (?Sabiá sabe?), uma ode a Elza Soares (?Invento?), a crônica de uma madrugada introspectiva na rua (?Ritmo da moçada?, de Negro Leo, a única do disco que não leva a assinatura de Iara, só ou com parceiros como Gustavo Gallo, Domenico Lancellotti, Bruno di Lullo e Alzira E).
? ?Flecha? é solar, é onde afirmo que não me limito à ideia de estranheza, que às vezes lançam sobre mim. Gosto do choque, mas não me resumo a isso. ?Flecha? tem uma comunicação direta, palatável até. Curumim (produtor de ?Flecha? com Iara, que produziu ?Arco? sozinha) foi muito importante pra isso.
Levando em conta os debates que se dão em torno da questão do gênero hoje, Iara inicialmente resiste em classificar os discos diretamente como masculino e feminino (?Pode ser limitador?). Mas reconhece essas energias ali:
? O ?Arco? é o feminino, mas é mais violento. O ?Flecha?, masculino, é mais dócil. Masculino e feminino existem. Mas é engraçado, tive dúvidas em dizer qual disco era o ?Arco? e qual era o ?Flecha?. O ?Flecha? é mais fálico, o ?Arco? tem mais o meu discurso, é o que absorve. Esse buraco que puxa pro obscuro, que tem muito a ver com essa discussão atual. É como diz aquela música do Negro Leo: ?Quem tem medo de buceta??. Talvez os discos sejam masculino e feminino, mas são transgêneros ? diz Iara, com precisão e certo humor.