Cotidiano

Crítica: 'Sul', de Veronica Stigger

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RIO ? A verdade é que não senti falta da verdade em ?Sul?, de Veronica Stigger.
Explico. O livro traz três textos e uma espécie de surpresa: um conto (?2035?),
uma peça teatral (?Mancha?), um poema narrativo (?O coração dos homens?) e, por
fim, o texto batizado ?A verdade sobre ?O coração dos homens???, que se propõe a
revelar o que seria biográfico ou não em ?O coração dos homens??. Porém este
último texto exige um gesto e uma decisão do leitor. As páginas do caderno final
do livro que contêm ?a verdade? vêm lacradas. Não foram cortadas mecanicamente
e, para ler seu conteúdo, é preciso decidir rasgar, romper as folhas. E aí
volto: não senti falta da verdade ou curiosidade de abrir as páginas secretas. E
isso é um elogio a ?Sul?, livro que diz muito, independe de revelações
(biográficas ou não) a seu respeito. Embora muito distintos em conteúdo e
linguagem, seus três textos criam forte ligação entre si pelo poder de
estranhamento, por temas e ideias que suscitam e vão sublinhando à medida que se
acumulam.

O Sul de Veronica não é direção a seguir. Pode ser um lugar, mas parece mais
um imaginário violento e ritualizado ? no que todo ritual tem de não-dito e
segredos. É sobretudo sangue. Isso vem com força no conto de abertura,
minidistopia na qual uma menina, ao fazer 10 anos, é buscada em casa por
?oficiais? e um ?civil? para ser o centro das ?comemorações?. Do início ao
violento desfecho, passando pelo ?civil? que carrega a garota nas costas, tudo é
ritual e normalização do absurdo, tudo é aquele estranho que, se pensarmos bem,
não é tão estranho assim. E ao final, o rastro de sangue, sinônimo de violência,
mas também de rito ou de sacrifício convertido em espetáculo.

Sangue e estranhamento também marcam a peça ?Mancha??. Com tons de teatro do
absurdo, as personagens Carol 1 e Carol 2 estão cercadas de mistérios incômodos:
as manchas de sangue no tapete, o intermitente som do chuveiro. Mas sempre que
se aproximam desses assuntos (por insistência de Carol 2), problemas na
maquiagem, fofocas ou tergiversações, mudam o rumo do diálogo, num clima de
?elefante na sala? ou ?rei nu?, que podem ser metáfora de quase tudo no Brasil.
E há ?O coração dos homens??, texto em versos com as memórias da narradora a
partir da primeira (e outras) menstruação. Mas está longe de um clichê sobre fim
da infância, descobrir-se mulher. São episódios sarcásticos, de revelação de
absurdos e até da violência da infância, da escola e de certos ritos escolares
ou domésticos que aprendemos a ter como normais.

Cada um dos textos pede reflexão mais demorada pelo que permitem de
significação e leituras. Por exemplo, chama a atenção em todos (pode ser um
vetor para pensar ?Sul?) a relação entre sangue e mulheres, seja pela violência,
pelo mistério ou pela menstruação.

Mas a verdade é que, por dever de resenhista, pratiquei o ritual e rasguei as
páginas que traziam a revelação. E, na posição de leitor de ficção, quero crer
que Veronica oferece um efeito contrário ao de esclarecer. Admito: nada impede
que você saia por aí afirmando que ?na verdade isso não aconteceu, a escritora
explica no final do livro?. Contudo, lembro que não há pacto biográfico em
?Sul?. Em momento algum ele se oferece como biografia. ?A verdade sobre ?O
coração dos homens??? pode ser lido também como ficção. Nova camada de ficção.
Como numa sala de espelhos, perder-se sem referência estável. Claro, dá para ir
ao Google ou contratar um detetive para saber se A verdade é verdade. Mas parece
que este recurso de Verônica está aí para discutir sobre a busca do real na
ficção, do ?baseado em fatos reais?, do reality show, da legitimação da ficção
pelo real e, por que não, do terror de spoilers: não conta o segredo antes da
hora.

Contudo, arrisco que o mais importante das páginas lacradas não esteja no que
há de metáfora, ensaio e até expansão da literatura em direção às artes
conceituais. Ao criar um objeto que propõe ao público um gesto individual,
irrepetível (rasgar as páginas), Veronica aproxima-se da performance, do efêmero
tão caro à produção artística atual. Sim, o livro pode ser lido e relido por
mais pessoas, e a leitura será sempre individual e intransferível, mas o rasgar
das páginas e o decidir fazê-lo é ainda mais único. O objeto é um antes de mim e
será outro depois (sem chance de retorno à condição inicial). Nesse sentido,
cria-se uma nova camada ritualística em ?Sul?, para além das tantas percebidas
nas tramas ficcionais. E pode-se pensar que mais do que revelar segredos da
autora, este livro está revelando discussões importantes e potencialidades para
o literário.

Reginaldo Pujol Filho é autor de ?Só faltou o título? (Record, 2015) e
doutorando em Escrita Criativa na PUC-RS.

?Sul?

Autor: Veronica Stigger

Editora: Editora 34

Páginas 96

Preço: R$ 35

Cotação: Ótimo