O cenário político brasileiro foi chacoalhado pela condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, uma decisão histórica que, longe de pacificar, aprofunda as já acirradas divisões no país. Em um julgamento “quase relâmpago”, a Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) sentenciou Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão em regime fechado, acusado de tentativa de golpe de Estado e conspiração para assassinato, com o objetivo de se manter no poder após a derrota nas eleições de 2022.
Contudo, o que se seguiu à proclamação do veredito levantou uma série de questionamentos, principalmente em virtude do voto divergente do ministro Luiz Fux, que expôs fragilidades e contrariedades processuais.
Exagero e Injustiça?
A condenação de Jair Bolsonaro, com uma pena de 27 anos e 3 meses, destaca-se não apenas por ser a primeira de um ex-presidente brasileiro por tentativa de golpe, mas também por sua severidade, que já é alvo de intensa crítica por juristas e aliados. A título de comparação, essa pena é equiparada ou até superior à de criminosos notórios por atos de extrema violência. Elias Maluco, um dos chefes do Comando Vermelho, recebeu 28 anos pela brutal tortura e assassinato do jornalista Tim Lopes. Outros casos chocantes, como o de Pimenta Neves (19 anos e 2 meses por homicídio triplamente qualificado), Elize Matsunaga (16 anos e 3 meses por homicídio qualificado e ocultação de cadáver), Celsinho da Vila Vintém (18 anos por tráfico) e o Goleiro Bruno (20 anos e 9 meses por homicídio triplamente qualificado, sequestro e ocultação de cadáver), resultaram em sentenças menores.
Para a direita e uma parcela considerável da população (42% dos brasileiros, segundo a Eurasia Group), essa condenação não é vista como justa, mas sim como uma perseguição política. Governadores como Tarcísio de Freitas e Romeu Zema publicamente criticaram a decisão, com Tarcísio afirmando que Bolsonaro foi “julgado e condenado muito antes de tudo isso começar”. O próprio governo de Donald Trump nos Estados Unidos condenou a decisão, enquanto os filhos de Bolsonaro, Eduardo e Flávio, falaram em “fim da democracia” no Brasil.
Esses questionamentos ganham ainda mais peso à luz do voto do ministro Luiz Fux, que apontou “violações processuais e cerceamento ao direito à defesa”, além de levantar a “incompetência absoluta” do STF para julgar o caso da “trama golpista”. A defesa de Bolsonaro, por sua vez, alega ausência de provas e cerceamento de defesa, argumentando que a “minuta do golpe” é apócrifa e nunca foi formalizada.
Oposição se articula com foco em 2026
Diante do cenário adverso, a oposição, liderada por figuras como o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e o PL, intensificou a articulação em torno de um projeto de anistia. O projeto ganhou força no Congresso após a condenação, representando uma esperança de indulto não apenas para Bolsonaro, mas também para outros investigados e condenados nos atos de 8 de janeiro.
A proposta de anistia, cuja minuta foi divulgada pelo PL, é ampla e visa incluir Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro, envolvidos nos atos de 8 de janeiro e alvos de inquéritos sobre fake news e milícias digitais. Mais ambiciosamente, o texto buscaria reverter a inelegibilidade do ex-presidente, permitindo que ele dispute as eleições presidenciais de 2026. A articulação envolve líderes do Centrão, interessados nos votos de Bolsonaro e em outras pautas, como a PEC da Blindagem. Bolsonaristas manifestaram confiança, afirmando que “na Câmara já tem quórum para aprovar a anistia”.
Para facilitar a aprovação, a oposição considera a possibilidade de limitar a anistia, excluindo os responsáveis por depredações e danos ao patrimônio público. O deputado Luciano Zucco (PL-RS) enfatiza que “tem que punir dano ao patrimônio. O resto é narrativa”. Essa é uma tese central da direita: a de que não houve um “golpe” efetivo, já que não houve apoio das Forças Armadas e nenhum comandante foi denunciado.
Exemplo do PT
A oposição também tem realizado uma série de ações para manter o tema da anistia em debate público, incluindo reuniões com parlamentares e familiares de presos. A Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de janeiro (Asfav) compilou um relatório sobre a situação dos detidos, que motivou a ideia de criar uma comissão externa para visitá-los, assim como o PT fez em 2018 com Lula. Há, inclusive, um requerimento de urgência para que o PL da anistia seja votado diretamente no plenário, contornando a manobra do ex-presidente da Câmara, Arthur Lira, que havia criado uma comissão especial para atrasar a tramitação.
Resistência no STF
Contudo, a possibilidade de anistia enfrenta forte resistência. O STF já sinalizou que tais crimes contra o Estado Democrático de Direito seriam inconstitucionais para anistia, posição reforçada pelo ministro Flávio Dino. O governo Lula, por sua vez, mobiliza uma “força-tarefa” para barrar a proposta na Câmara.
E a prisão?
Integrantes do STF estimam que Jair Bolsonaro (PL) deve começar a cumprir pena em regime fechado até dezembro, podendo ser antes, em outubro ou novembro, conforme o andamento dos recursos. Condenado a 27 anos e 3 meses por tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente cumpre hoje prisão domiciliar. A jurisprudência permite início da execução da pena após a rejeição dos dois primeiros embargos de declaração, que raramente mudam o resultado. A publicação do acórdão pode levar 35 dias, seguida de prazos para recursos e manifestação da PGR. Se cada etapa avançar rapidamente – como tem sido a regra nas ações contra Bolsonaro-, a prisão pode ocorrer antes do limite previsto.
O voto de Fux e gestos reveladores na Suprema Corte
A sessão de julgamento no STF, especialmente durante o voto do ministro Luiz Fux, ofereceu um vislumbre das tensões e, para muitos, da postura dos demais ministros frente a uma argumentação contrária. Fux, que divergiu do relator Alexandre de Moraes, apresentou um voto extenso, que se arrastou por mais de 8 horas, superando as 5 horas da leitura do relatório de Alexandre de Moraes. Ele havia distribuído previamente um sumário de seus pontos aos colegas e pediu para não ser interrompido durante sua manifestação.
Apesar da preparação e do pedido de Fux, a reação dos ministros variou de uma atenção inicial à visíveis sinais de cansaço e distração à medida que o voto se alongava. Na quarta-feira (10), dia do voto de Fux, no início da manhã, os ministros Moraes, Cármen Lúcia e Flávio Dino diligentemente tomavam notas e analisavam documentos. Porém, na parte da tarde, a cena mudou drasticamente. Moraes foi visto bocejando longamente, cobrindo a boca, e se ausentou do plenário por cerca de 10 minutos, assim como o procurador-geral da República, Paulo Gonet, que demonstrava “cansaço no semblante”. Flávio Dino também foi flagrado mexendo no celular e olhando para o teto, enquanto Cármen Lúcia se mantinha “em silêncio, anotando” e organizando papéis.
O contraste entre a meticulosa e longa argumentação de Fux — que abordou desde questões preliminares até a individualização das condutas dos réus, apresentando motivos para absolver e condenar em cada acusação — e a aparente falta de foco dos colegas levanta dúvidas. Houve até um momento em que Fux mencionou a palavra “vista” (suspensão do julgamento), gerando um burburinho na plateia, o que Moraes, aparentemente atento, notou e riu.
Para muitos observadores, essa reação sugeriu que parte dos presentes, e talvez dos próprios ministros, não estava totalmente engajada na complexidade do voto divergente, o que indicaria uma predisposição ou um desinteresse frente a uma tese que desafiava a maioria.
Legado de um julgamento controverso
A condenação de Jair Bolsonaro é um marco, mas a forma como o julgamento se desenrolou e as reações que gerou, especialmente em torno do voto de Luiz Fux, garantem que o debate sobre sua legitimidade e proporcionalidade persistirá. A defesa já considera usar o voto de Fux para apelar a órgãos internacionais, e a busca pela anistia continuará sendo uma pauta central da oposição, com impactos diretos nas eleições de 2026. O Brasil segue, assim, mergulhado em uma profunda polarização, com cada lado reafirmando suas convicções e a justiça, mais uma vez, sendo percebida por muitos como um campo de batalha político.