OPINIÃO

Coluna Direito da Família

O PROCESSO E O GÊNERO DA CULPA

Cascavel e Paraná - A irracionalidade presente na lógica do seriado da plataforma Netflix “Round 6” sobre “Batatinha frita, 1,2,3” seguida de um fuzilamento não é inovadora e se assemelha à crítica de Franz Kafka sobre a burocracia jurídica nas regras do jogo, cujo sistema opaco e invisível reflete a sensação de impotência do indivíduo diante das instituições, inclusive judiciais.

Se não há redenção do personagem Josef, no processo kafkiano, pior seria se a personagem fosse mulher. Só que diferente de Josef, a culpa ontológica não estaria no desconhecimento das regras do jogo e sim na compreensão das desigualdades presentes nessas regras que podem oprimi-la e violentá-la, em suas últimas consequências, podendo contar, inclusive, com o suporte jurídico. Isso ocorre quando se está diante das chamadas violências processual e institucional, comuns nas varas de família, as quais sofrem profundo recorte de gênero.

Diferente da violência institucional que ocorre pela conformação das normas aparentemente neutras que estigmatizam, a violência processual de gênero se evidencia por toda conduta discriminatória, inadequada ou abusiva, fundamentada em gênero, que ocorre no âmbito processual. Pode ser cometida por quaisquer agentes que atuem no andamento do processo, seja na propositura sucessiva e repetitiva de ações temerárias sem fundamentação idônea e com propósito ardiloso, seja no menosprezo direto à condição de mulher por meio de expressões constrangedoras e humilhantes em peças e atos processuais.

Quantas mulheres não foram vítimas da discussão sobre a legítima defesa da honra até o reconhecimento, em 2021, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a incompatibilidade desse discurso com a dignidade da pessoa humana? Quantas vezes os direitos de gestar e maternar foram brutalmente afrontados pelo sistema e suas regras “objetivas”, inclusive às advogadas, até a formalização de normativas como a de prioridade da sustentação oral nos tribunais em caso de gestação?

Quantas mulheres foram descredibilizadas em suas palavras, já que a palavra da vítima supostamente teria valor no sistema processual, até a edição da lei Mariana Ferrer, também em 2021? Quantas mulheres continuam a ser retratadas em peças processuais como “aproveitadora”, “descontrolada”, “vingativa”, “rancorosa”, “fútil”, “ardilosa”, “oportunista”, “possessiva” e tantos outros adjetivos que traduzem o menosprezo à pessoa em razão de sua condição de mulher?

O sistema, eventualmente, reconhece essa violação de direitos, como a manifestação do Órgão Consultivo do Tribunal de Justiça do estado da Bahia (em 2019, pasme) sobre tal conduta poder configurar infração disciplinar punível pelo Tribunal de Ética da Ordem dos Advogados; como a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que reconheceu que a violência processual pode ter repercussões indenizatórias e reforçou a necessidade da aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero; ou como o Provimento da Corregedoria Nacional de Justiça que estabelece protocolo para enfrentamento de abusos cometidos dentro e pelo Poder Judiciário. Ou mesmo na condenação do Brasil no caso de Maria da Penha, em relação à conduta do agressor e do sistema judiciário.

Contudo, parece tornar-se mero reconhecimento panfletário, diante da ineficácia de repressão sobre a violência processual, bem como pela perpetração de violência institucional, com negligência (na falha de agir e investigar), no epistemicídio materno e no silenciamento infantil (com a absurda manutenção de uma lei sem respaldo científico), na revitimização processual (em ter que repetir incansavelmente – para buscar a falha no relato) e na complacência com a sobrecarga materna diante do leque de direitos a pais ausentes.

Se Kafka mostrou que a culpa pode ser fabricada pela ausência de regras, a experiência das mulheres no sistema processual revela um paradoxo ainda mais cruel: as regras existem, mas servem, muitas vezes, para culpabilizar, silenciar e punir justamente aquelas que ousam denunciar.

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito