Cascavel - Ressuscitar não é apenas voltar à vida, mas reinventá-la. Em Pobres Criaturas (2023), a protagonista não recebe apenas uma segunda chance de existir, mas de se redescobrir sem amarras. Sua jornada é um mergulho na intensidade de viver fora dos padrões, questionando as normas que moldam corpos e mentes dentro de um único modelo aceitável. Entre a liberdade e a construção da própria identidade, ela se desprende dos padrões sociais e transforma sua existência em um ato de resistência contra os limites impostos ao que significa ser e pertencer.
Recomeçar é também ressignificar, desafiando a ideia de uma única trajetória possível, e permitindo repensar também as estruturas familiares em modelo padronizado. A noção de família nuclear, especialmente atrelada ao casamento, deve dar espaço a outros modelos familiares em que o afeto, além da biologia, seja alicerce das relações parentais – um espaço necessariamente de constantes transformações.
Nesse sentido, os tribunais judiciais têm se alinhado no reconhecimento de modelos familiares diversificados e do compartilhamento formal de criação e cuidado em diversas figuras parentais. É possível, portanto, que haja a pluralidade de pais e/ou mães expressos na certidão de nascimento, seja pela inclusão de pais socioafetivos, seja para abarcar os casos de inseminação artificial, em especial para casais homoafetivos.
A filiação socioafetiva nasce não apenas do convívio, mas de um ato de vontade: a escolha consciente de ser responsável por alguém, de construir laços de pertencimento que não dependem do acaso genético, mas da constância do afeto, em que se permite a felicidade do amor que multiplica.
No extremo oposto, é possível conhecer o espaço vazio da recusa do compromisso de cuidado: o abandono afetivo, que evidencia que o laço biológico não garante a efetividade da parentalidade. Se de um lado se acolhem novos amores, de outro, rompem-se os vínculos com aqueles que renunciam ao seu papel, de modo a ser possível a supressão do sobrenome bem como a extinção da relação paterno-filial (até porque, como tal relação é via de mão dupla, a não comprovação desse abandono afetivo pode ensejar em obrigações do filho abandonado com quem decidiu desbravar o mundo antes de exercer sua maior responsabilidade, como o pagamento de pensão alimentícia na velhice daquele que abandona).
Ressignificar também é mudar o olhar sobre os casos de inseminação artificial, que detém regulamentação para procedimentos entre o próprio casal que deseja a paternidade ou com a doação de material genético por terceiro. Em qualquer dos casos, os procedimentos clínicos dependem do cumprimento de vários quesitos técnicos a fim de estabelecer a paternidade ou a maternidade, principalmente no tocante ao consentimento sobre o uso do material genético. A princípio, o doador anônimo não tem qualquer relação paterno-filial com a criança gerada, salvo se houver comprovação de relação socioafetiva entre ambos.
Mesmo que não haja normas para inseminação caseira (aquela que ocorre fora do ambiente médico), o que dificulta o registro da criança, urge que as relações de parentalidade sejam reconhecidas a fim de garantir a salvaguarda da dignidade do menor. Não se pode desproteger um direito tão basilar diante da barreira econômica e legal para a realização do planejamento familiar, pois este é um direito constitucional de qualquer cidadão.