Opinião

Coluna Direito da Família: Era digital e o afeto imortalizado

A morte é um assunto desafiador. Em um mundo biológico imortal, sem começo e sem fim, a noção da finitude humana preocupa desde os primórdios da humanidade. Daí porque a tentativa corriqueira de deixar legados, pois estes, em tese, poderiam garantir a imortalidade, bem como a preocupação com a vida após a morte. Tomá-la como certa, torna mais leve o fardo do desconhecido.

Para os que ficam, o sofrimento se prolonga no tempo: a dor e a saudade acompanham o luto. Assim, qualquer fagulha de lembrança quer ser mantida, na ilusão da continuidade da vida. Afinal, a eternidade está na lembrança por meio do afeto. Dessa forma, não só o aspecto patrimonial emerge com o falecimento, mas também a extensão existencial.

No contexto digital, esse assunto é ainda mais complexo, envolvendo dados e acervos digitais, com expressão econômica ou não, que são intermediados por empresas e companhias, atualmente limitadas por regras de proteção de dados (após a Lei Geral de Proteção de Dados). Não há regulamentação legal sobre a herança digital, embora não seja inovadora a possibilidade de versar sobre patrimônio sem valor econômico.

Quanto aos dados e arquivos monetizáveis, como canais, criptomoedas e contas, não existe grande divergência quanto à integralização na herança. A celeuma surge com os bens imateriais e afetivos, pois sua divulgação, ainda que seja aos familiares, pode atentar contra a privacidade e à intimidade. Por expressa disposição legal, a morte põe fim à personalidade do indivíduo e de suas obrigações, caducando, portanto, direitos da personalidade. Contudo, a mesma não extirpa definitivamente o indivíduo da sociedade; não se deletam indivíduos como arquivos.

A memória e o legado mantêm a vida após a morte. Apesar da fragilidade moderna entre o público e o privado, na medida em que se torna hábito comum a divulgação diária até dos pensamentos, ainda se protegem a intimidade e a privacidade do conhecimento público. Este depende de expressa vontade do indivíduo, mesmo após sua morte (por meio de testamento). Todos os dados, em vida ou em morte, estão calcados em um princípio fundamental: a autodeterminação informativa, ou seja, saber para decidir, com autonomia.

No cotidiano, nem sempre há profunda preocupação com a divulgação de dados e arquivos pelas mídias digitais, alcançando, inclusive as informações falsas (fake news), todavia, com o falecimento, é imperioso o cuidado para evitar violações aos direitos da personalidade do falecido. Inclusive, este pode querer ser esquecido, no âmbito digital, e deve lhe ser garantido o direito ao esquecimento, como aspecto do direito à intimidade.

Assim, ao contrário do patrimônio de aspecto econômico, em que a transferência é imediata com a morte, o imaterial e afetivo depende de análise mais cautelosa, diante da possível colisão de direitos fundamentais. A complexidade do tema está atrelada a uma das maiores questões da humanidade: a finitude humana frente à imortalidade biológica.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas