A pandemia que mudou a vida de bilhões de pessoas mundo afora alterou de modo mais significativo a vida de quem vive em cidades brasileiras divididas pela linha de fronteira. É o caso de Foz do Iguaçu e Ponta Porã (MS), cidades-gêmeas de Ciudad del Este e Pedro Juan Caballero (PY) respectivamente, municípios onde as economias se misturam e que passaram a conviver com uma realidade inusitada desde 28 de março, quando o governo paraguaio fechou as fronteiras com o Brasil.
Desde então, a livre circulação entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero foi interditada por cercas de arame farpado e pneus e passou a ser controlada pela polícia e exército paraguaio. Mais do que separar dois países, a barreira física dividiu uma cidade ao meio, interferindo nas relações sociais dos cidadãos de ambos os lados da linha fronteiriça, com reflexos mais diretos sobre o comércio, o trânsito de veículos e a educação.
Uma nova dinâmica foi estabelecida no comércio de produtos e na circulação de pessoas. Para vencer as barreiras físicas, os moradores de ambos os lados passaram a adotar práticas como fazer solicitações via whatsapp e receber a encomenda na linha de fronteira, como mostra vídeo da professora L. (por segurança, não mencionaremos o nome dos entrevistados).
“Como o pagamento tem que ser à vista, tem fila para tirar o dinheiro do banco”, afirma L., destacando que a circulação de mercadorias ocorre em ambos os sentidos, entre os dois países. “A diferença é que eles vêm pra cá o dia inteiro e nós não podemos ir pra lá. A fiscalização realizada do lado paraguaio permite a entrada e saída dos paraguaios, mas os brasileiros não entram”, lamenta.
Moradora de Ponta Porã há 40 anos e pesquisadora do tema ‘fronteiras’ pela Universidade da Grande Dourados (UFGD), L. diz que a declarada intenção de cobrança de propina por parte de agentes do estado no Paraguai deixa uma sensação de impotência aos brasileiros que precisam circular pela fronteira.
Mas a necessidade de circulação em uma cidade que divide dois países não pode ser definida pela relação econômica. Dos oito alunos especiais da professora A., cinco são paraguaios. Cedida pela Secretaria de Educação de Mato Grosso do Sul para atender alunos excepcionais, A. precisa ir até a linha divisória entre os dois países para seguir a orientação de entregar atividades pedagógicas complementares aos pais dos estudantes. “É um momento histórico, nunca vivemos essa situação” lamenta a professora.
Também pesquisadora da UEMS, A. defendeu recentemente, em meio à pandemia, sua dissertação de mestrado, trazendo pesquisa reveladora de uma realidade fronteiriça pouco conhecida. De um universo de 1.473 alunos de cinco escolas de ensino fundamental de Ponta Porã, situadas na faixa de até um quilômetro da linha de fronteira, 952 são naturalizados brasileiros, mas vivem no Paraguai.
A adoção da cultura latina por parte desses brasileirinhos se reflete na mistura de português, espanhol e guarani, a língua doméstica do país vizinho. “Legalmente são brasileiros, uma vez que são registrados no Brasil, mas pelo menos um dos pais é paraguaio e a maioria vive no Paraguai. Em muitos casos, eles só se expressam em guarani”, conta a professora.
Aos professores resta buscar meios para lidar com essa realidade. Tentando cumprir o novo papel que a pandemia lhe impôs, A. lamenta que a polícia paraguaia tenha mudado de comportamento e, na atualidade, dificulte até mesmo a comunicação com os pais dos alunos que estão do outro lado. “Agora eles fecharam o cerco e não podemos entregar mais nada”. Para não deixar os estudantes sem atividades, a professora procura parentes com permissão para fazer a travessia para entregar as atividades das crianças.
O professor visitante do mestrado em Fronteiras e Direitos humanos da UFGD, Camilo Pereira Carneiro Filho, lamenta que o fechamento das fronteiras por parte do governo paraguaio tenha ocorrido poucos dias depois da assinatura, por parte dos presidentes do Mercosul, de uma declaração com a predisposição de manter ações integradas para minimizar os efeitos do Covid-19. “A pandemia veio alterar toda uma realidade histórica entre o Brasil e Paraguai, uma situação atípica que vivemos”, define. “A gente vê a necessidade de as autoridades dos dois países buscarem estratégias ou planos de reabertura”
Para a professora L., a dinâmica de Ponta Porã está associada ao Paraguai da mesma forma que a cidade gêmea depende do Brasil. “Nenhuma é mais importante que a outra. O sentimento das pessoas não é tanto pela pandemia, mas sim pelo fechamento da fronteira, pela falta de ir e vir.”
Tríplice fronteira – Na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, Foz do Iguaçu também vive um momento sem precedentes. A interdição das duas pontes que ligam os países vizinhos alterou o perfil da cidade, marcado pelo acesso terrestre que permite deslocamentos como se Ciudad del Este e Puerto Iguazú fossem bairros da cidade.
Sem previsão para reabertura do comércio no Paraguai, uma vez que o presidente paraguaio Mario Abdo Benítez já manifestou intenção de manter as fronteiras fechadas até o final do ano, Foz do Iguaçu se viu sem o característica e histórica aglomeração da travessia da Ponte Internacional da Amizade e tudo o que ela representa em termos de movimentação financeira e social.
A surpresa e o espanto dos moradores ao se depararem com imagens nunca antes vistas da ponte deserta, deu lugar à nostalgia de enfrentar a interminável fila, que já se tornou característica da cidade. Para quem depende do comércio no país vizinho, como é o caso de centenas de empresários e milhares de trabalhadores brasileiros que moram em Foz e fazem a travessia diariamente, é uma questão de sobrevivência mais séria.
Além do comércio paraguaio, os moradores da fronteira também sentem falta dos atrativos oferecidos pelos hermanos desde a interrupção da Ponte Tancredo Neves, em 28 de março. O apelo da carne argentina e o charme de Puerto Iguazú se somam à variedade de atrativos turísticos de Foz do Iguaçu e contribuem economicamente para o turismo, que dispara como grande vetor da economia da região.