Brasília - O STF (Supremo Tribunal Federal) iniciou hoje, 2 de setembro, às 9h, o julgamento sem precedentes na história democrática brasileira, com o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus do chamado “núcleo 1” enfrentando acusações de liderar e articular uma trama golpista após as eleições de 2022 (clique aqui para assistir o julgamento). No entanto, a defesa de Bolsonaro e seus aliados tem consistentemente apontado para o que consideram falhas significativas no processo e na eficácia das provas apresentadas pela PGR (Procuradoria-Geral da República).
A PGR acusa Bolsonaro de ser o “principal articulador, maior beneficiário e autor dos atos mais graves” da conspiração, utilizando a estrutura do Estado para corroer a confiança nas urnas eletrônicas e pressionar a cúpula militar, culminando nos ataques de 8 de janeiro de 2023. Contudo, a defesa sustenta uma narrativa de ausência de provas de execução e um “golpe imaginado”.
Contestações
A defesa de Bolsonaro, comandada pelos advogados Celso Vilardi e Paulo Cunha Bueno, rejeita todas as acusações, argumentando que não houve execução de nenhum plano golpista, tratando-se de discussões e rascunhos “sem valor jurídico”. Os advogados afirmam que a narrativa da PGR configura um “golpe imaginado” e, mesmo que tenha havido a cogitação de ruptura institucional em um “brainstorm”, não há prova cabal que ligue Bolsonaro aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.
Uma das principais tentativas da defesa é a nulidade do acordo de delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Os advogados de Bolsonaro mencionam “diversas contradições e lacunas” na colaboração de Cid, além de reportagens que indicaram que ele usou redes sociais durante a vigência do acordo e teria dito a terceiros que delatou sob pressão (algo que depois negou).
A própria PGR observou que “persistem indícios de condutas de Cid possivelmente incompatíveis com o dever de boa-fé objetiva, principalmente em suas omissões sobre fatos relevantes”. A PGR citou o caso de áudios em que Cid atacava o STF e a Polícia Federal, o que levou à sua prisão preventiva, e inconsistências entre o conteúdo da delação e outras informações da investigação, incluindo planos de assassinato de autoridades e monitoramento do Ministro Alexandre de Moraes. Assim, Cid retificou seu depoimento anterior sobre alguns eventos após a emergência dessas evidências. Além disso, houve a suspeita de que Cid teria usado um perfil de terceiro no Instagram para se comunicar com a defesa de um corréu, violando restrições cautelares.
A defesa protestou contra os sucessivos indeferimentos de pedidos para ter mais prazo para analisar os documentos. Os advogados alegam ter recebido mais de 70 terabytes de arquivos de forma gradual, inclusive enquanto o prazo da defesa corria, necessitando de muito mais tempo do que o concedido para uma análise adequada.
Competência
Advogados de Bolsonaro e outros réus do mesmo núcleo, tentaram levar o julgamento da Primeira Turma para o plenário completo do STF, apostando em votos favoráveis de ministros indicados por Bolsonaro, como André Mendonça e Nunes Marques. Nunes Marques, por exemplo, votou pela improcedência da ação de inelegibilidade de Bolsonaro no TSE, considerando que a conduta não teve gravidade suficiente. Houve também pedidos de suspeição do Ministro Alexandre de Moraes, dado que a denúncia aponta um suposto plano de homicídio contra ele.
Condenação certa?
Embora a defesa enfrente uma batalha árdua e juristas considerem uma vitória “quase impossível”, o sagrado direito à defesa busca criar dúvidas e provocar os ministros até o último instante. O julgamento, que deve prosseguir por várias sessões, definirá o futuro do ex-presidente e seus aliados, em um momento histórico para a democracia brasileira.
Rito
O rito que será adotado no julgamento está previsto no Regimento Interno do STF e na Lei 8.038 de 1990. A sessão será aberta pelo presidente da Primeira Turma, ministro Cristiano Zanin. Em seguida, o ministro chamará o processo para julgamento e dará a palavra a Alexandre de Moraes, que fará a leitura do relatório, desde as investigações até a apresentação das alegações finais, última fase antes do julgamento.
Crimes e penas
Bolsonaro foi acusado e está sendo julgado pelos crimes de “Organização Criminosa Armada”;
“Tentativa de Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito”; “Golpe de Estado”, “Dano Qualificado pela Violência e Grave Ameaça contra o patrimônio da União”; e “Deterioração de Patrimônio Tombado”.
A PGR acusa Bolsonaro de ser o “principal articulador, maior beneficiário e autor dos atos mais graves” da conspiração, utilizando a estrutura do Estado para corroer a confiança nas urnas eletrônicas e pressionar a cúpula militar. Caso as penas máximas para cada crime sejam aplicadas, o ex-chefe do Executivo pode ser condenado a mais de 40 anos de reclusão.
No entanto, mesmo com uma possível condenação, o cumprimento da pena de prisão só ocorreria após o trânsito em julgado, ou seja, quando todos os recursos cabíveis forem esgotados, o que pode levar alguns meses ou, em caso de pedido de vista, estender-se até o primeiro trimestre de 2026.
Vale lembrar ainda que Bolsonaro já foi declarado inelegível até 2030 pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, independentemente do resultado deste julgamento no STF.
Fux terá papel crucial e limitado no julgamento
Enquanto o Supremo se prepara para um dos julgamentos mais históricos da democracia brasileira, o olhar atento de analistas e juristas se volta para a figura do ministro Luiz Fux. Considerado um “legalista” e o mais “destoante” entre os membros da Primeira Turma, Fux pode ser a voz com divergências significativas na ação contra Jair Bolsonaro e outros réus. No entanto, a extensão do impacto de seu voto no desfecho final do processo ainda é objeto de especulação.
Divergências
Desde o início da tramitação do processo, Fux tem demonstrado divergências claras em relação à condução de Alexandre de Moraes, relator do caso. Ele foi o único a se posicionar contra medidas cautelares impostas a Bolsonaro, como o uso de tornozeleira eletrônica e a proibição de acesso às redes sociais. Para Fux, não havia provas que justificassem o risco de fuga do ex-presidente. Além disso, o ministro argumentou que impedir o uso das redes sociais “confronta-se com a cláusula pétrea da liberdade de expressão”.
No que tange à aplicação da lei, Fux já indicou que deve defender penas mais brandas para os réus. Ele se posicionou contra a ideia de punir a tentativa de golpe como crime consumado, enfatizando a necessidade de distinguir entre atos preparatórios e a execução. Fux expressou “absoluta certeza” de que, em “tempos pretéritos, jamais se caracterizaria a tentativa como crime consumado”.
Sua argumentação também deve incluir que os crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito não deveriam ser somados, uma vez que o segundo seria uma consequência do primeiro. Além da dosimetria das penas, o ministro também tem questionamentos quanto à competência do próprio STF para julgar o caso, alegando que os réus não possuem foro privilegiado. Ele contesta, ainda, que o julgamento esteja sendo conduzido pela Primeira Turma, em vez do plenário completo da Corte.
Impacto
Mesmo que Fux consiga divergir em seu voto, uma eventual “vitória” da defesa ao quebrar a unanimidade pode não ser suficiente para levar o caso ao plenário completo do STF. A jurisprudência atual da Corte exige que, para que um recurso como os embargos infringentes seja aceito em casos julgados por uma Turma, haja pelo menos dois votos pela absolvição em um ou mais crimes (um placar de 3 a 2). Se houver apenas um voto pela absolvição, ou se a divergência for apenas sobre o tamanho da pena, o recurso não é cabível.
Pedido de Vista?
A possibilidade de um ministro pedir “vista” (mais tempo para analisar o processo) é uma das expectativas que poderiam alterar o ritmo do julgamento. Fux é considerado o maior candidato a solicitar um pedido de vista. Caso isso ocorra, o processo poderia ser adiado por até 90 dias, o que, considerando os recessos de fim e início de ano, empurraria a conclusão para março de 2026. Um adiamento como esse poderia, teoricamente, permitir o surgimento de novos fatos que alterassem o desfecho.
Contudo, as chances de Fux fazer o pedido são consideradas baixas. Além disso, há um “porém”: se os outros três ministros (Dino, Cármen Lúcia e Zanin) votarem rapidamente pela condenação, formando maioria (três votos), o pedido de vista de Fux poderia ser “atropelado” e seu voto divergente, mesmo que contrário, ficaria vencido antes mesmo de ser apresentado.