Um segundo pode mudar tudo. Uma parada cardíaca mudou a vida de Daniel Blake, no longa britânico “Eu, Daniel Blake”, que parou sua rotina de trabalho e não conseguiu amparo do governo por dificuldade em lidar com a burocracia. A trama, porém, ganha contornos interessantes pelo acompanhamento com uma família com quem o protagonista faz grande amizade – a qual se torna, de certa forma, sua família.
Nesse sentido, há correlação com uma situação jurídica que vem ganhando destaque através do Projeto de Lei 105/2020 que cria um instituto jurídico, para ser acrescido ao Estatuto do Idoso, chamado de “senexão” – uma espécie de relação interpessoal com pessoa idosa regulamentada pelo Direito. O projeto, que ainda não foi aprovado, prevê um mecanismo de proteção aos idosos que estejam em ameaça de violação ou violação de direitos, através de colocação em família substituta, sem que haja criação de laços paterno-filiais. Ou seja, quem detém a obrigação de manutenção, sustento e amparo com o idoso não terá direitos patrimoniais decorrentes da relação de cuidado e afeto.
Essa preocupação do legislador decorre do choque entre a longevidade e a efemeridade das relações familiares, que impacta na proteção da velhice, prevista na Constituição enquanto direito social. Há, pois, carência de políticas públicas nesse sentido, de modo que o Estado, através do Poder Legislativo, devolve a responsabilidade das relações familiares e comunitárias à sociedade (assim como fez com relação aos doentes psiquiátricos, por exemplo). De outro lado, contudo, quando o Estado se recusa a enfrentar o estilhaço das suas próprias omissões e deposita o peso das soluções nos braços da sociedade, surgem aberrações como o muro erguido na Cracolândia.
A maior questão nesse instituto é que ele se afasta da adoção, de modo que não haverá desconstituição dos vínculos anteriores e a constituição de novos vínculos parentais, ou seja, não haverá direito sucessório (herança) nem direito a alimentos. Após devido processo judicial e registro, com anuência do idoso, este é acolhido, portanto, enquanto parente atípico, havendo uma relação de parentesco, mas não filial. Assim, parece haver uma confusão conceitual quando o projeto de lei expressa diversas vezes a existência de relação socioafetiva entre a família substituta e o idoso. Até porque a referida socioafetividade poderia, em tese, formar uma relação filial de fato, ainda que não de direito.
O projeto parece se inspirar em iniciativas de convivência intergeracional vistas em países como Itália, Espanha e Japão, que promovem programas de companhia para combater o isolamento dos idosos e incentivar um envelhecimento mais digno. Trata-se, sem dúvida, de uma proposta louvável. No entanto, é crucial lembrar que o envelhecimento não transforma caráter — canalhas também envelhecem. Além disso, o impacto emocional e mental sobre quem assume o papel de cuidador, muitas vezes mulheres já sobrecarregadas com múltiplas demandas geracionais, não pode ser ignorado na formulação das políticas públicas.
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito