Sou um apaixonado pelas cidades, sejam elas quaisquer, pequenas, grandes, médias… Já reparastes que as cidades têm alma, personalidade própria, única?… E nisso os seus moradores devem ser invejados: só eles, com a convivência cotidiana, é que sabem dos segredos, dos problemas, das belezas existentes em sua aldeia. Existe, e isso é inegável, uma relação de amor da cidade com seus moradores. Já percebestes? É na cidade que as pessoas se encontram e se relacionam, vivem a sua história, sonham e sentem saudade… É nas cidades que acontece o amor, onde a paz e a felicidade podem ser construídas, se assim for o desejo humano.
Por mais de trinta anos trabalhei em postos de saúde e hospitais de pronto-socorro, em diversas cidades, grandes e pequenas, complexas ou simples, e tive o meu jeito especial de conhecê-las… Um lado meio que pelo avesso, prestando assistência a portadores de doenças crônicas e também agudas – em momentos críticos. Mesmo assim, conseguia me relacionar com as pessoas e descobrir que as cidades têm cheiro, som, temperatura própria. Elas têm variações também próprias, conforme as estações do ano. As que se localizam no litoral são mais felizes no verão, ao contrário das serranas – mais vivas no inverno. As pequenas são mais dependentes dos personagens humanos que as compõem, ao contrário das maiores, mais frias, que parecem fugir de seus habitantes, de seu passado, e que precisam de um cuidado maior dos administradores.
Existe uma tendência de descontrole, quando não há planejamento, desses monstrinhos que acabam, muitas vezes, por determinar nossos caminhos, levando ao encontro ou desencontro com pessoas e familiares, com o desejado trabalho, o lazer muitas vezes desprezado por falta de tempo, com os serviços diversos que movimentam a roda da economia, enfim.
Uma cidade ideal, para a catadora de lixo carioca Ângela Amorim, é aquela onde as pessoas possam se sentir “por inteiras”, donas de sua vida e de seu destino, conscientes das suas potencialidades. Para Michel Teló, cantor do hit “Ai, se eu te pego”, uma cidade esplêndida é aquela onde haja respeito entre as gerações e boa educação, como um cidadão, no transporte coletivo, dar o lugar para uma senhora ou para um idoso. Para o poeta simbolista francês Charles Baudelaire, a cidade esplêndida é qualquer uma, desde que desejada e conquistada com determinação e paciência a cada amanhecer.
Encontrei na Praça da Liberdade, em Belo HohO Horizonte, o senhor Delmar Lustosa, com 97 anos, na manhã de um sábado. Piauiense e bancário aposentado, vivia há mais de 60 anos em Minas Gerais. Quando lhe perguntei sobre a cidade esplêndida, ele me diz: “Vivi em várias cidades, doutor, todas foram maravilhosas, porque Emília, minha companheira e grande amor, estava sempre comigo. Agora, ela está como se fosse ausente, em casa, com o Mal de Alzheimer, e acho que esta cidade já não é tão bela como imaginava antes”. E, do nada, começou a cantar a versão em português da canção “You’ll never know” (aqui fez sucesso com o nome “Eu vou ter sempre você”), imortalizada por Antônio Marcos: Você jamais saberá, querida / A falta que você faz em mim / Meu coração se nega a pensar em outro alguém / Ele não quer que eu seja de mais ninguém / Até o fim dos meus dias… Eu vou ter sempre você comigo / Não adianta eu querer mentir / E por onde eu andar, você vai estar / E nas noites eu vou sonhar / Eu vou ter sempre você em mim”.
Perguntei sobre os seus sonhos, e ele me contou que sonhou duas vezes na semana passada. Não tinha uma idade definida, mas no primeiro sonho, cantava para uma plateia de amigos e desconhecidos, na praça, e as pessoas gostavam muito dele. E isso o deixava feliz… Mas, no outro dia, sonhou que a cidade toda era de pedra, tudo era de pedra, assim como as pessoas também eram de pedra… E isso o deixou triste e meditativo. Uma cidade feliz e musical. A outra, triste e toda de pedra. Concluímos, antes que ele prosseguisse a sua caminhada por entre os belos jardins floridos, que a diferença está nos olhos e coração de cada pessoa; a cidade, afinal, nasce dentro de cada um de nós, e o que salta aos nossos olhos é o que desejamos ver. O que eu te desejo, meu irmão e minha irmã, é a cidade esplêndida do poeta francês, que precisa ser sonhada e conquistada a cada amanhecer, com determinação e paciência. E que tu saibas cultivar flores em teu coração.
Dr. Márcio Couto – Médico Cardiologista.
CRM-PR 14933. Membro da diretoria da AMC.