BRASÍLIA – O governo federal vai editar um decreto para
liberar a doação de armas pesadas apreendidas no país para as polícias. A
intenção é garantir que fuzis e metralhadoras retirados da clandestinidade
possam ser usados pelos órgãos de Segurança. Hoje, em virtude de regulamentação
do Estatuto do Desarmamento, as armas irregulares são destruídas pelo Exército,
mesmo que estejam em condições adequadas de funcionamento. Embora o propósito
seja equipar as corporações evitando gastos em momento de crise econômica, a
mudança é controversa dentro e fora do governo.
De autoria do Ministério da Justiça, o texto da proposta
passou por várias negociações até ser endossado pelo chefe da Defesa, ministro
Raul Jungmann, que o encaminhará à Presidência da República nos próximos dias.
Ex-presidente da Frente Parlamentar do Controle de Armas na Câmara e um dos
congressistas mais atuantes em prol do Estatuto do Desarmamento e contra a
doação dos objetos apreendidos para as polícias, Jungmann diz que os riscos da
medida foram atenuados com alterações na redação do decreto, para restringir o
rol de armas passíveis de serem doadas.
? As armas que serão efetivamente repassadas para as
polícias serão armas pesadas, o que reduz o risco, porque você não vai estar
rompendo o padrão (das armas adotadas pela polícia), e essas armas são em um
número menor, o que permite o controle e a perícia delas. As armas pequenas
ficariam de fora. Por aí, acho que não tem maiores riscos ? disse Jungmann ao
GLOBO.
Segundo análise de setores de inteligência do governo,
com o fim das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o Brasil deve
se tornar o principal destino na América do Sul dos fuzis usados pela guerrilha
urbana, o que elevará a apreensão desse tipo de material nos próximos anos. Além
disso, o poder de fogo cada vez mais elevado das organizações criminosas é
apontado como justificativa para armar a polícia também.
Um aumento contínuo da apreensão de fuzis ocorre no Rio
de Janeiro desde 2012, quando 246 armas desse tipo foram retiradas de circulação
pelas polícias do estado. No ano passado, foram 344 ? um acréscimo de 40% em
quatro anos. Em 2016, até setembro, segundo dados oficiais do Instituto de
Segurança Pública, ligado ao governo estadual, 234 fuzis já foram apreendidos.
No Brasil, houve apreensão de 110.327 armas de fogo em
2015, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O Rio é o quarto estado
do ranking, com 9.268 artefatos, perdendo apenas para Ceará (11.675), São Paulo
(18.605) e Minas Gerais (23.227). A ideia do decreto é que a unidade da
Federação onde a arma foi apreendida terá prioridade na doação. Se ela não tem
necessidade daquele armamento ou não puder recebê-lo, o material poderá ser
repassado a outro estado. As doações terão de respeitar o critério de quantidade
e tipo de armas permitido a cada polícia no Brasil, segundo definição do Comando
do Exército.
O enquadramento das doações nos limites impostos pelo
Exército é usado para rebater críticas de que a medida aumentaria a circulação
de armas, ampliando os riscos de desvios do material. Apesar de os ministérios
da Justiça e da Defesa terem aparado as arestas sobre o decreto, após ouvidos os
comandos das Forças Armadas, para chegar a um texto consensual, há resistências
na Casa Civil, que dará a última palavra sobre o assunto.
MEDIDA É POLÊMICA
O decreto para liberar a doação de armas pesadas para as polícias encontra
resistências dentro e fora do governo. O Executivo quer incluir a medida no
Plano Nacional de Segurança Pública, que deve ser lançado ainda este ano, mas há
críticas quanto aos benefícios reais da iniciativa.
Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz, diz que o
grande problema está nos riscos trazidos caso as doações sejam
institucionalizadas de forma indiscriminada. Ela cita pesquisa da entidade feita
entre 2011 e 2012 com cerca de dez mil armas apreendidas na capital de São
Paulo, das quais cerca de 50% tinham numeração raspada.
? Temos que pensar como vai se dar a gestão dessas doações. A arma com
numeração raspada, que é muito comum entre as apreendidas, teria de ser
renumerada, o que pode fragilizar os controles do país. Não serão armas
padronizadas, com especificações contempladas nos treinamentos recebidos pelas
corporações e manutenção em dia ? pondera Natália. ? Se falamos em armas de
grosso calibre, que parece ser o objetivo do governo, é preciso garantir que
sejam acessadas apenas pelas equipes especiais, em ocasiões apropriadas. Não dá
para usar esse armamento, que derruba parede, em situações de confronto, por
exemplo.
ASSALTOS A DEPÓSITOS
Além da regulamentação do Estatuto do Desarmamento, que determina a
destruição das armas apreendidas pela polícia ou entregues em campanhas de
desarmamento, há resolução do Conselho Nacional de Justiça, de 2011, no mesmo
sentido. Apesar disso, doações a órgãos de Segurança já ocorrem hoje, mas em
situações excepcionais, com autorização expressa do juiz.
Hoje, a regra é que as armas permaneçam em depósitos judiciais, nos fóruns
criminais, até o fim do processo relacionado a elas. Como as ações costumam
demorar anos na Justiça, esses locais ficam abarrotados e são frequentemente
alvo de assaltos e outras formas de desvios. O acervo tem como destino final o
Exército, que destruiu 73.392 armas em 2015, colocando-as em prensas mecânicas
para inutilização e depois em fornos com temperatura de 1.600°C.