RIO – O Vale das Princesas, em Miguel Pereira, fica no encontro de duas das mais importantes áreas de Mata Atlântica do estado do Rio de Janeiro, as florestas das serras dos Órgãos e do Tinguá. É lá também um dos lugares em que o Brasil das doenças da mata e do campo se encontrou com o país urbano, pois foi uma das localidades em que pessoas contraíram malária causada por um parasita que se pensava ser específico de macacos. Trata-se de uma nova via da doença junto da segunda maior região metropolitana do país. Malária
Surtos de malária com 49 casos em municípios do Rio com florestas da Serra do Mar registrados em 2015 e 2016 foram causados pelo Plasmodium simium, revela o geneticista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mariano Zalis, um dos principais autores da descoberta e especialista em sequenciamento genético de parasitas. As pessoas infectadas tinham recebido confirmação de diagnóstico pelo Plasmodium vivax, o mais frequente no Brasil e endêmico na Amazônia, o que intrigava cientistas.
A descoberta de que essa forma de malária de macaco pode ser transmitida pelo mosquito ao homem tem implicações para a saúde pública no estado e para o controle de malária no país. Zalis destaca que, embora o risco de surtos maiores seja pequeno agora, os casos humanos de malária de macaco evidenciam que a vigilância de doenças infecciosas precisa ser repensada e intensificada. O Rio e o Brasil como um todo apresentam todos os elementos de risco, isto é, grande população, infestação por mosquitos e florestas.
– É preciso estar sempre alerta. Não acreditamos que provocará uma epidemia agora, mas é um alerta. Esse plasmódio pode se adaptar, como outros patógenos já fizeram. Não virou epidemia porque o Plasmodium simium parece pouco competente para infectar o ser humano. E ele causa uma infecção mais branda. Porém, é a primeira vez que se demonstra em nível molecular que essa forma de malária de macaco pode ser transmitida para o mosquito e deste para o homem. Essas pessoas não trouxeram a doença de fora do Rio. A doença já estava aqui no estado. Há quanto tempo, não sabemos – salienta.
Principal doença infecciosa no mundo, a malária teve seu ciclo de transmissão no estado do Rio considerado interrompido em 1968. O estado onde a doença causou devastação até a primeira metade do século XX parecia livre de um dos seus maiores flagelos. Hoje, a região amazônica concentra cerca de 99,5% dos casos no Brasil.
Porém, a malária pode nunca ter ido de fato embora. Casos autóctones (originários no próprio local) esporádicos têm sido registrados no Rio desde 1993. Casos autóctones de malária também são registrados nas últimas décadas em São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina. De 2006 a 2014, 61 casos foram notificados no estado do Rio.
Zalis explica que foi preciso fazer uma análise molecular refinada para identificar o parasita. Em 2015 foram 33, e 16 em 2016. Houve casos, por exemplo, em Guapimirim, Petrópolis, Nova Friburgo (Lumiar) e Macaé (Sana). O Plasmodium simium é muito parecido com o Plamodium vivax.
– Só a análise molecular permitiu distinguir os dois e verificar que era o simium o causador da doença. Ele também foi identificado em macacos de florestas do Estado do Rio. Mas não sabemos a extensão da infecção em mosquitos anófeles (os transmissores da malária), comuns em áreas de floresta, e nos macacos. Ou se existem pessoas assintomáticas vivendo junto às regiões de mata – observa.
Um artigo sobre a descoberta está em elaboração por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de outras instituições brasileiras e estrangeiras.
O Brasil é um país tropical, com florestas e isso é um patrimônio valioso. Mas à medida que mais pessoas entram nas matas o risco de doenças aumenta, adverte o infectologista Paulo Feijó Barroso, professor da Faculdade de Medicina da UFRJ.
– Por isso, a vigilância é tão importante. Além disso, médicos precisam estar atentos para esses casos. Hoje, a taxa de letalidade é cerca de 70 vezes maior nas áreas não endêmicas, fora da Amazônia, porque o diagnóstico é tardio e a doença se agrava antes que o tratamento adequado seja oferecido. Não existe vacina, mas há tratamento – frisa Feijó, que já tratou de casos de malária no Rio.
Segundo ele, a maioria dos profissionais de saúde não está preparada, não pensa em malária em pacientes febris que não viajaram para áreas consideradas endêmicas (Amazônia e países africanos).
– Isso é um problema sério de saúde pública. A malária existe na Mata Atlântica. Todo ano, por exemplo, você vê cinco ou seis casos de Lumiar – diz.
Preocupa ainda o fato de a descoberta mostrar a existência das condições de transmissão da malária:
– Se você tem malária autóctone, significa que existe no lugar o mosquito transmissor, o parasita e uma população 100% suscetível. A grande estratégia é treinar profissionais de saúde fora da área endêmica para o diagnóstico da malária. A emergência de novos agentes infecciosos e a reemergência de antigos é um dos efeitos colaterais do avanço da sociedade, com mais pessoas e impacto no meio ambiente. Se uma pessoa entra no mato, precisa se proteger, usar repelente e saber que tem risco – frisa Feijó.
O caso do engenheiro Alexandre Betoni da Cunha, de 60 anos, é emblemático das dificuldades no diagnóstico. Morador do urbano Catete e frequentador do Vale das Princesas, ele passou lá a virada de Ano Novo de 2014 para 2015, na casa de parentes. Engenheiro que trabalha para hidroelétricas, Cunha está acostumado a viajar pelo Brasil a trabalho e sempre se cuidou.
– Sou vacinado contra a febre amarela, sempre fico atento quando viajo. E nunca tive nada. Mas em meados de janeiro de 2015 comecei a ter febre, calafrios, tremores, quase sempre na mesma hora. Fui a médicos e nada. Até que minha irmã que é médica e uma outra médica amiga desconfiaram de malária. Eu não acreditava. Achava loucura – conta.
Não era loucura. Era malária. O diagnóstico e o tratamento correto foram realizados na Fiocruz.
– Fui muito bem atendido lá. Quando comecei a tomar os remédios certos, melhorei logo. Mas continuei em acompanhamento por seis meses – acrescenta.
O engenheiro não deixou de frequentar o Vale das Princesas. Passou lá a virada para 2016:
– Não sei exatamente onde fui picado porque mosquito sempre existiu. Vou continuar a ir para o mato, mas agora com outros cuidados, agora sei que essas coisas podem acontecer – diz ele, que descobriu que improvável não significa impossível.