Cotidiano

Crise no estado põe em risco atendimento a crianças vítimas de abusos

2016 913602308-img_0035.jpg_20160602.jpgNITERÓI – Sem ao menos esperar, D. viu sua vida desmoronar há dois anos, quando sua filha W., então com 12 anos, revelou o impensável: sofria abusos sexuais há seis. O algoz era o padastro, que forçava a menina a ter relações sexuais com ele quando a mãe não estava em casa. Após procurarem a polícia, W. acabou encontrando guarida no Núcleo de Atenção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Maus-Tratos (Naca) de Niterói, especializado no atendimento a crianças com suspeitas de ter sofrido abuso. A crise no estado, entretanto, ameaça o fechamento do órgão, que há seis meses não faz novos atendimentos.

Segundo D., o Naca era o único local ao qual a filha, que teve alta em dezembro, ia espontaneamente durante o tratamento.

? Ela ficava triste e não queria ir ao hospital. Mas daqui ela sempre gostou muito. Foram muito bons com ela ? diz D., que voltou ao Naca quinta-feira para encontrar a equipe de reportagem.

W. foi uma das 513 crianças e adolescentes atendidos pelo Naca Niterói entre 2010 e 2015. O equipamento, mantido através de convênio entre a ONG Movimento de Mulheres em São Gonçalo e a Fundação da Infância e Adolescência (FIA), órgão vinculado à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, é o único a oferecer atendimento especializado para casos de suspeita de violência sexual na cidade. Segundo Marisa Chaves, fundadora da ONG, a situação está insustentável.

? O estado pagou o mês de janeiro no fim de maio. Desde janeiro, nossos profissionais estão trabalhando em regime de voluntariado. Diante do quadro atual, só conseguimos manter o Naca aberto por mais dois meses ? diz Marisa.

Funcionando com quadro de profissionais reduzido ? os voluntários trabalham oito horas por semana ?, o órgão deu sequência apenas aos atendimentos em curso, para, por exemplo, emitir laudos para o Ministério Público em ações criminais sobre abuso sexual.

Segundo Jhonatan Anjos, conselheiro do 3º Conselho Tutelar de Niterói, responsável pela Zona Norte, a rede de assistência da cidade não tem alternativa para o atendimento:

? Nesses casos, a gente acaba tendo que encaminhar para os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que não contam com expertise nesse serviço, além de terem uma demanda enorme de outras naturezas.

Mesmo com a suspensão do atendimento a novos casos, o Naca tem uma fila de espera com 19 nomes. São pessoas que procuraram o órgão espontaneamente cujas condições foram consideradas de alta gravidade. Elas aguardam o restabelecimento do serviço para iniciar o acompanhamento psicossocial.

A prefeitura de Niterói diz que não tem estimativas de quantos casos foram atendidos nos Creas da cidade desde janeiro por conta da falta de atendimento especializado. Até dezembro de 2015, cerca de cem pacientes eram atendidos por mês no Naca.

O GLOBO-Niterói questionou a FIA sobre os atrasos nos pagamentos, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.

ACORDO COM A PREFEITURA PODE IMPEDIR FECHAMENTO

2016 913853477-protesto_estupro.jpg_20160603.jpgA direção do Movimento de Mulheres em São Gonçalo tenta um acordo com a prefeitura de Niterói para evitar o fechamento definitivo do Naca. A ONG teve uma reunião em abril com o atual secretário municipal de Assistência Social, Gabriel Siggelkow Guimarães, e participou de uma licitação para o atendimento especializado, mas até agora não houve manifestação oficial do município, garantindo que o contrato será assinado.

? Nossa esperança é chegar a um acordo com a prefeitura, porque, diante da crise, não temos como ter certeza de que vamos receber (o pagamento) do estado ? explica Marisa Chaves.

Em nota, a prefeitura informa que ?a Secretaria municipal de Assistência Social dialogará com a FIA e com a Secretaria estadual de Assistência Social, bem como com municípios vizinhos, para buscar uma solução conjunta para o problema?.

Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram um cenário preocupante em relação aos crimes sexuais em Niterói. Entre 2011 e 2015, foram registrados 708 casos de estupro na cidade. Nos quatro primeiros meses deste ano, outras 39 ocorrências foram notificadas.

A rede municipal de Saúde também registra números alarmantes de abusos: foram registradas 163 notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2010 e 2015. O tipo mais frequente neste grupo é o estupro, com 49,50% do total, seguido de atentado violento ao pudor, com 22,28%; e assédio sexual, com 21,29% dos casos.

Dados da Fundação Municipal de Saúde (FMS) mostram que 71,8% dos casos de abusos atendidos nas unidades de saúde têm como alvo crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos. Adultos de 25 a 59 anos correspondem a outros 16,74% das ocorrências, enquanto jovens de 20 a 24 anos somam 9,69%. Os casos contra idosos de 60 anos ou mais são 1,76%.

Em nota, a FMS afirma que ?realiza um trabalho de vigilância, por meio das fichas de notificações de violência, não apenas sexual, mas também por negligência, abandono, física e psicológica. Os dados são registrados pela Coordenação de Vigilância em Saúde?. Diz ainda que trablha ?em conjunto com profissionais das policlínicas, das unidades básicas e do Médico de Família, onde há troca de informações para maior atenção, assistência e vigilância de famílias de risco residentes nas áreas das respectivas unidades de saúde?.

Motivadas pelo chocante caso de estupro coletivo de uma jovem de 16 anos, no Rio, militantes feministas fizeram um protesto no último domingo no Campo de São Bento. Dezenas de cartazes com frases como ?Lugar de mulher é onde ela quiser? foram colocados na grade do parque para chamar a atenção de quem passava pela Avenida Roberto Silveira.