Cotidiano

Kate Tempest e Ramon Mello são ovacionados na Flip

Numa vazia Tenda dos Autores, a mesa ?O palco e a página?, com o poeta Ramon Mello e a escritora, rapper e dramaturga inglesa Kate Tempest, encerrou a programação deste sábado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O pouco público presente, no entanto, acompanhou um bate-papo apaixonado sobre a musicalidade da poesia, com leituras instigantes e engajamento, tanto pela literatura quanto por temas de apoio a minorias e causas sociais, como frisou Mello ao tomar a palavra: ?Queria dedicar essa fala a dois grupos que são importantes e estão sendo exterminados no Brasil: os homossexuais e os índios.?

No início do debate, mediado pelo jornalista Daniel Benevides, ele comentou o constrangedor encontro de ontem à noite, quando cometeu uma gafe ao chamar a jornalista peruana Gabriela Wiener de ?devassa? e afirmar que ela não era ?uma mulher de família?.

– Como dizem, a segunda vez é melhor – brincou, antes de apresentar os convidados. – Apesar de jovens, os autores aqui presentes são muito talentosos, com obras bastante consistentes – disse Benevides.

E essa consistência pôde ser vista na performance elétrica de Kate, que acaba de lançar no Brasil seu primeiro romance, ?Os tijolos nas paredes das casas? (Casa da Palavra). A inglesa de 31 compartilhou com a plateia como iniciou sua vida artística, que passa por música, teatro e literatura.

– A musicalidade do meu trabalho veio do lirismo do hip-hop, quando descobri a possibilidade de me comunicar através da música. A ideia de que a língua tem que viver numa página é um absurdo para mim. Um poema tem que ser lido, tem que arder com intensidade. Você não pode olhar passivamente para um poema. Ele tem que ganhar vida e explodir. Um poema é algo inacabado antes de ser ouvido – bradou Kate.

Bastante presente em sua obra, a mitologia aparece nos versos da autora como uma maneira de conectar as pessoas com uma força ancestral comum.

– Vivemos num tempo em que estamos desconectados. Sentimos falta de uma experiência compartilhada, de uma conexão com nosso passado que possa nos conectar com o presente e fugir da neurose que essa era nos inflige. Vivemos de maneira desumana e anti-natural, e acredito que a música e a poesia têm o poder de nos unir. Sou uma estranha aqui, mas me sinto parte desta tenda e de vocês – disse a escritora britânica, bastante aplaudida.

Num dia que contou com a bielorrusa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura de 2015 por sua literatura investigativa e empática sobre guerras e desastres ambientais, a mesa que encerrou o quarto dia de Flip foi uma das mais humanas e calorosas. Mello, que que é HIV positivo, falou sobre a criação do recém-lançado ?Há um mar no fundo de cada sonho? (Verso Editora).

– Comecei a escrever esse livro depois de receber o diagnóstico. É muito estranho, bate aquele velho clichê: nunca achamos que vai acontecer com a gente. Então, quis entender como essa condição atravessaria minha escrita. Ainda há um pudor de trazer essa questão com naturalidade – contou Mello, que fez duras críticas ao governo interino. — É inadmissível um governo fechar ministérios como o dos direitos humanos e o da igualdade racial. Temos o melhor sistema de medicação contra a AIDS do mundo, de graça. E ainda querem acabar com o SUS. É um absurdo – disse.

Quando o assunto foi a saída do Reino Unido da União Europeia, Kate foi implacável contra o resultado do referendo.

– O Brexit foi devastador. Na era em que vivemos, devemos nos aproximar uns dos outros, mas eles preferem se isolar numa pequena e gélida ilha. Não importa se você está à esquerda ou à direita. Temos problemas ambientais e humanitários graves, precisamos pensar como seres humanos.