Cotidiano

Viajantes com deficiência falam sobre os desafios de fazer turismo

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RIO – Num dia de sol, como qualquer outro daquele verão de 2013 em Boston, a estilista Michele Simões fez um passeio de caiaque no Charles River. Vestiu colete, cravou as pás do remo na água e deslizou por quase uma hora. Nada muito diferente das outras pessoas a seu redor. A não ser pelo fato de que ela deixara sua cadeira de rodas no píer.

Paraplégica desde 2006, a paulista Michele é uma entre tantos viajantes com alguma deficiência que deixam o medo de lado na hora de fazer as malas para viajar pelo mundo. Com ajuda de serviços adaptados ou encarando os obstáculos que a falta de acessibilidade deixam pelo caminho.

BVAcessibilidade

Sucesso de público, a Paralimpíada do Rio jogou luz sobre essa parcela considerável da população ? somente no Brasil são cerca de 45 milhões de pessoas com alguma deficiência, segundo o censo do IBGE de 2010 ? e motivou ações necessárias à maior inclusão. O aeroporto do Galeão, por exemplo, investiu R$ 5,5 milhões em projetos de acessibilidade, que incluem novos elevadores, banheiros adaptados, rampas de acesso, pisos táteis, placas em braile, avisos sonoros e treinamento de libras para 45 funcionários, que foram úteis para os mais de quatro mil paratletas que desembarcaram na cidade, e continuarão sendo para os passageiros que não fazem parte da chamada Família Paralímpica.

As principais melhorias estão no novo Píer Sul e no Terminal 2. Mas as grandes aquisições podem ser as 26 novas pontes de embarque, ou fingers, fundamentais para passageiros com necessidades especiais.

? A companhia aérea pode avisar, com até 72 horas de antecedência, se terá algum passageiro com necessidade de atendimento especial a bordo. A partir daí, essa aeronave passa a ter prioridade para o uso dos fingers. Temos agora 58 deles, e a expectativa é que nenhum passageiro com dificuldade de locomoção precise mais descer na pista. Se isso acontecer, temos dois ambulifts ? diz o gerente de Qualidade e Serviços de Segurança do Galeão, Alessandro Oliveira, se referindo aos veículos com uma espécie de elevador que coloca os passageiros na altura da porta do avião.

Escada no avião ainda é comum

A Gol também promete legados dos Jogos Paralímpicos. A empresa já utiliza novas rampas de acesso para aviões que fazem embarque e desembarque remoto no Santos Dumont e em Congonhas. Elas são acopladas às portas das aeronaves.

? Isso é importante. Infelizmente, subir ou descer de avião pela escada ainda é situação muito comum a pessoas com deficiência no país ? relata Laura Martins, outra cadeirante que não tem medo de rodar o mundo.

Quando viajar ensina a domar o medo

Antes de pousar no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, o engenheiro agrônomo Luiz Thadeu Nunes e Silva tinha medo de atravessar as avenidas de sua cidade, São Luís. Mas ao desembarcar, teve que andar na neve, com seu par de muletas.

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? Foi meu teste de fogo, em pleno gelo europeu ? relembra o maranhense, que passou a caminhar com muletas há nove anos, após um acidente de trânsito. ? Fiquei quatro anos de cama. Quando tirei os ferros das pernas, quis compensar esse tempo. Desde 2009 já fui a 104 países. E quero conhecer muito mais. A próxima viagem será à África. E um dia vou visitar Kiribati (no Pacífico), onde o sol nasce primeiro e que está afundando.

Luiz Thadeu, que se tornou especialista em garimpar passagens em promoção, ganhou o mundo ao visitar o filho, que fora estudar na Irlanda. Só naquela viagem foram oito países, incluindo França, Itália e Marrocos. Já para Michele Simões, o mundo se abriu quando ela virou estudante. E aprendeu uma lição que nunca esqueceria:

? Foi um intercâmbio em Boston. Dois meses em outro país, outra língua. Foi um divisor de águas. Vi que podia ir aonde quisesse, se me dessem condições. Só eu poderia me colocar limites.

Partilhando experiências

Para compartilhar o que aprendeu se virando lá fora, Michele começou o blog Guia do Viajante Cadeirante, onde escreve sobre suas viagens. Do Canadá, guarda ótimas lembranças.

? Em Toronto, há um serviço chamado Paratransit, uma van adaptada que custa o mesmo preço do ônibus normal e me levava por toda a cidade ? explica a estilista.

As experiências de viagem de mineira Laura Martins também fizeram surgir um blog, o Cadeira Voadora. Nele, ela conta como chegou a lugares bem distantes de sua Belo Horizonte natal.

? Dos lugares que tive, o mais bem preparado para cadeirantes foi Londres. Os ônibus vermelhos são perfeitamente adaptados, assim como os museus, as calçadas. Adorei também Nova York, principalmente no centrão turístico. Longe de Midtown já há algumas dificuldades ? conta, ressaltando que o famoso metrô de Nova York deixa a desejar no quesito acessibilidade. ? Aliás, estou para conhecer um metrô bom mesmo. O melhor em que já andei foi o do Rio.

Para essa funcionária pública, acessibilidade só existe quando representa liberdade e segurança para a pessoa com deficiência. Mas o termo muitas vezes é mal aplicado:

? Muitos hotéis se dizem acessíveis, mas não têm um balcão rebaixado na altura da cadeira de rodas para o check-in. Em banheiros, barras de segurança parecem colocadas de qualquer maneira. Há normas a serem seguidas, não é de qualquer jeito.

Laura diz que prefere sempre se hospedar em hotéis de grandes redes e, de preferência, novos. Para Michele, essa é uma questão crucial. Depois de uma traumática viagem para Buenos Aires, ela passou a sempre pedir fotos dos quartos e banheiros antes de fechar a reserva.

? Disseram que o banheiro era acessível, mas só havia uma banheira. Como não tenho equilíbrio no tronco, se não estivesse com meu namorado, não poderia tomar banho nenhum dia.

Pelo Brasil: turismo inclusivo de Noronha a Socorro

Laura, Michele e Luiz Thadeu têm histórias diferentes e estilos de viagem distintos entre si. Mas os três concordam quando dizem que o Brasil ainda precisa avançar muito na questão da acessibilidade de uma forma geral, inclusive no segmento do turismo.

? Ainda não há uma cultura inclusiva bem estabelecida no país, mas as coisas estão mudando. Devagar, mas estão ? considera Laura, que cita Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, como uma atração amigável às pessoas com deficiência.

O parque artístico nos arredores de Belo Horizonte é um dos cerca de 530 mil estabelecimentos cadastrados no novo Guia do Turismo Acessível, recém-lançado pelo Ministério do Turismo, durante a Paralimpíada do Rio. Trata-se de um portal onde usuários podem avaliar restaurantes, serviços de hospedagem, lojas, áreas de lazer, praias, serviços de turismo e atrações como museus, parques e zoológicos em todo o país. A ideia é que esse banco de dados gere um grande guia, no qual se possa consultar a qualidade do serviço prestado a pessoas com deficiência. Cada local é avaliado de acordo com quatro tipos de deficiência: auditiva, visual, física ou motora, ou mobilidade reduzida.

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O Guia do Turismo Acessível pode ser acessado pelo site turismoacessivel.gov.br ou em aplicativos para smartphones com os sistemas iOS, Android e Windows. O material traz ainda um manual que ensina ao prestador de serviço como atender melhor a pessoa com deficiência.

Outro importante destino turístico brasileiro que pode ser avaliado no guia virtual lançado pelo governo é Fernando de Noronha. Desde 2013 o arquipélago pernambuco entrou para o mapa do turismo acessível, com a construção de três trilhas suspensas, de madeira, nos percursos para os mirantes dos Golfinhos, do Sancho e Dois Irmãos. Já na Praia do Sueste funciona o Projeto Praia Sem Barreiras, que oferece esteiras até a água e cadeiras especiais para que pessoas com deficiência possam tomar banho de mar. E este ano foi lançado o Guia Turístico de Acessibilidade da Ilha, onde constam os serviços, equipamentos e atrativos acessíveis da região. E 21 restaurantes confeccionaram cardápios em braile.

Hotéis acolhem cães-guia

Noronha está no caminho que a pequena Socorro, no interior de São Paulo, começou a trilhar há pouco mais de dez anos, ao adaptar sua oferta de turismo de aventura para visitantes com deficiência. Aos pés da Serra da Mantiqueira, hotéis fazenda e agências especializadas oferecem rafting, tirolesa, escalada, cavalgadas e estações termais para visitantes com e sem deficiência.

? Não basta adaptar fisicamente, botar só uma rampa. Às vezes é preciso mudar o processo do passeio. No circuito de arvorismo convencional, o visitante vai na frente do instrutor. No arvorismo adaptado, vão os dois juntos ? explica Carlos Tavares, consultor de marketing dos hotéis fazenda Campo dos Sonhos e Parque dos Sonhos, pioneiros nesse segmento e vencedores da categoria de Melhor Hospedagem para Pessoas com Deficiência do World Responsible Tourism Awards, em 2014.

Os hotéis têm também sinalização em braile, quartos e escadas acessíveis e até espaço para cão-guia. Hoje, os concorrentes seguem os mesmos passos. O que não deixa Tavares aborrecido:

? A verdade é que o turismo acessível fez de Socorro uma cidade inclusiva como um todo. A cidade recebeu diferentes obras de acessibilidade e atualmente é um lugar adaptado para acolher nossos hóspedes. Isso nos orgulha muito.