Cotidiano

Apple: a linha entre a frugalidade e o absurdo

Você quer que sua multinacional seja uma boa cidadã corporativa. Mas você tem para com os acionistas a obrigação de não pagar nem um centavo a mais de imposto do que o exigido. Então qual é a linha que separa uma administração fiscal responsável da má cidadania? No momento, seria algo entre esses dois pontos:

A Apple estabeleceu sua operação de vendas na União Europeia de tal forma que as pessoas compravam produtos da Apple Sales International na Irlanda, não das lojas físicas espalhadas pelo continente. Assim, a Apple registrava todas as vendas, e os respectivos ganhos, diretamente na Irlanda.

A maior parte dos lucros era transferida da Irlanda para uma ?matriz? dentro da Apple Sales International. Essa ?matriz? não estava baseada em qualquer país, nem tinha empregados ou sede física. Suas atividades se limitavam a reuniões de diretoria. Somente uma fração dos lucros da Apple Sales International era alocada à filial irlandesa e sujeita a impostos na Irlanda. O grosso dos lucros era alocado à ?matriz?, onde ficava isento.

Estes são trechos do comunicado divulgado ontem pela Comissão Europeia, ao determinar que a Apple pague ? 13 bilhões em impostos retroativos, mais juros.

A decisão ainda será alvo de uma disputa jurídica; representantes do governo americano já se queixam de que a União Europeia está, injustamente, mirando em empresas dos EUA em sua batalha fiscal. Mas parece bastante claro que os métodos usados pelas gigantes de tecnologia dos EUA para transferir seu lucro para locais onde os impostos não são baixos, e sim inexistentes, estão se mostrando fora dos limites.

A UE, com seus diferentes sistemas fiscais, já dava ampla oportunidade para que multinacionais pagassem menos impostos. A Apple já havia transferido seus ganhos em países como França (33,3% de imposto corporativo) e Alemanha (15% na taxa federal, com impostos locais levando o total a cerca de 30%) para a Irlanda (12,5%).

Mas isso não bastava para a Apple e outras múltis americanas. A Google usou estratégias para reduzir seu imposto da 2,4%. A Starbucks ficou anos sem pagar impostos no Reino Unido, ao pagar royalties a uma filial holandesa e comprar café na Suíça. Esse ?lucro sem Estado?, argumentou em 2011 Edward D. Kleinbard, professor de Direito da Universidade Southern California, estava se tornando uma “presença difusa”, que “muda tudo” na área de impostos corporativos.

Desde então, a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) deu início a um projeto sobre “erosão da base fiscal e transferência de lucros” (Beps, pela sigla em inglês), com o objetivo de cercear tais práticas. E tanto a UE como alguns países europeus, em separado, têm recorrido a várias estratégias para tentar fazer com que as empresas paguem.

Uma das grandes dificuldades em se cobrar impostos retroativos é que esse movimento era, de maneira geral, permitido pela legislação de vários países da União Europeia. Por isso, a acusação da UE é que a Irlanda concedeu à Apple vantagens que não ofereceu a outras empresas. É uma suposta violação das regras de concorrência da UE, não um caso estritamente fiscal.

Mas há aqui uma lição para executivos tentando saber até onde levar a evasão fiscal. Quando a estrutura corporativa ultrapassa o limite da frugalidade e entra no terreno do absurdo ? e uma ?matriz? sem empregados ou sede física é bastante absurda ?, você está buscando encrenca. Em outras palavras, quando o planejamento fiscal transforma sua empresa em um cidadão sem país, você não está sendo um bom cidadão corporativo.