Cotidiano

Festival Mirada leva a Santos ícones da cena latina e da Espanha

mirada.jpgRIO ? Iniciado ontem em Santos, no litoral paulista, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas (Mirada) apresentará até o próximo dia 18 um recorte amplo e expressivo da cena brasileira, latina e, sobretudo, do teatro contemporâneo da Espanha, país homenageado desta 4ª edição do evento. Representantes de um teatro que provoca, arrisca e se distancia do ?bom senso comum?, Angélica Liddell e Rodrigo García apresentam as suas mais recentes criações, ?O que eu farei com essa espada?? e ?4?, respectivamente. Até o fim da mostra o Mirada apresnetará 43 montagens, e entre elas duas grandes estreias nacionais: ?A comédia latino-americana?, de Felipe Hirsch (dias 12 e 13) e ?Leite derramado?, adaptação do romance homônimo de Chico Buarque dirigida por Roberto Alvim (dias 15 e 16).

ENTREVISTA COM RODRIGO GARCÍA:

Argentino radicado há mais de duas décadas na Espanha, o autor e encenador é um dos artistas mais polêmicos e provocativos da cena contemporânea e apresenta nesta sexta-feira em Santos a última sessão da sua mais recente criação, o espetáculo ?4?: ?Minha obra mais abstrata e poética?, garante ele.

A última obra sua apresentada no Brasil foi ?Gólgota picnic?, em 2014. Até que ponto ?4? traz uma nova estratégia de crítica em relação aos excessos do capitalismo e do neoliberalismo, temas caros ao seu trabalho?

Após ?Gólgota…? precisei que ?4? fosse menos clara, em que o espectador devesse empreender, ou não, uma viagem pessoal, sem a minha ajuda. Em ?Gólgota…?, conduzi e ajudei demais… Os textos eram contundentes, bem acabados, enquanto que em ?4? é difícil penetrar nas frases, as imagens não simbolizam nada especificamente, não se destinam a representar a nada… Em ?Gólgota…? aqueles milhares de pães de hambúrguer no cenário deixavam clara a ironia com a Bíblia, o milagre da multiplicação dos pães recolocado na época do capitalismo e da economia neoliberal. Em ?4? há mais espaço para imagens, tudo é mais abstrato e poético que em todas as minhas obras anteriores. Você vê um ocidental vestido de samurai e não entende muito bem por que ele está contando toda a história da sua infância para duas meninas de nove anos. Bom, é claro que, para mim, há um sentido, mas é meu segredo.

?4? aborda o mundo do consumo, o culto à beleza, a violência contra a mulher, mas que contribuição um artista pode oferecer ao se aproximar dos problemas do nosso tempo, como a desigualdade social, as misérias humanas? Qual é a função política da arte?

Se os artistas falarem desses problemas de forma direta, função nenhuma. Nós já os conhecemos, não precisamos de um falso gesto político. Precisamos que o artista crie um gesto verdadeiro. Qual? Fazer poesia em um mundo que vive de costas para a poesia e para o estranhamento de viver. Viver é um horror, e é por isso que a poesia e a ficção são tão importantes para mim. Protegido por elas, posso até chegar a encontrar um sentido para viver. Bom, me cansei de fazer obras de teatro políticas, evidentes, embora tenha sempre cuidado para que não fossem panfletos. Mas se agora, por exemplo, vejo uma instalação ou assisto a uma peça que tenha um barquinho com africanos em desespero chegando à Europa, ou textos que falem de refugiados e vítimas de perseguições, simplesmente saio da sala. Não gosto de ver alguém que não é um artista usando isso, tentando mentir nos dizendo que é um artista. Do artista espero nada menos que a recriação do universo; algumas horas ou minutos de um novo universo. E não panfletos. É fácil demais, oportunista.

Além disso, que clichês você evita?

Não vejo mal em repetir clichês. Noventa por cento das pessoas que se dedicam à arte fazem isso. Mas tento fabricar meus próprios clichês e quando me canso de repeti-los, trabalho contra eles até acreditar que consigo mudar alguma coisa, mas no fim reconheço que não mudo nada, que sou prisioneiro das minhas limitações.

ENTREVISTA COM ANGÉLICA LIDDELL:

Atriz, autora e diretora, ela estreia ?O que eu farei com essa espada?? em Santos (dias 12 e 13) e em São Paulo (17 e 18). A obra se inspira em dois chocantes atos: o do canibal Issei Sagawa, que em 1981 esquartejou a namorada e declarou tê-lo feito por amor; e os atentados que deixaram 130 mortos na França, em 2015.

A obra parte de dois casos de extrema violência, um ato canibal e um atentado. O que a levou a escolher e observar esses eventos?

Essa peça é a segunda parte de uma trilogia em que tento lançar um olhar em direção ao infinito, ao mistério, a tudo que não compreendemos, incluindo o que em nós mesmos não podemos explicar. Senti a necessidade de construir um recanto para o irracional, localizando-o no país da ilustração, da razão, a França, pois os dois acontecimentos violentos sobre os quais falamos estão localizados no coração da razão. Mas nesse caminho artístico, busco me distanciar da vida civil, cotidiana, para devolver a violência a um lugar mítico, o que nos permite libertar outros aspectos da nossa natureza humana. Tento, através da poesia, converter a violência real em estética para que possamos devolver os homens à intimidade com seus instintos, com a sua vida espiritual mais profunda, às margens das leis de estado.

A Europa, hoje, tem lidado com a acentuação de problemas como o terrorismo, a intolerância à diferença… Quando uma artista como você investiga um episódio traumático como os atentados de Paris, o faz por crer que a arte tem uma contribuição específica a dar?

Para mim, o que acho fascinante na arte é que ela não tem nenhuma função social ou política. A arte é o mistério que nos faz entrar em um estado de angústia individual, uma epifania frente ao incompreensível. Nos dias de hoje sinto que existe uma espécie de ditadura estética segundo a qual tudo deve passar pelo social e pelo político, confundindo correção política com expressão artística. Para mim, o teatro não é político, mas uma busca sobre a condição humana, que deve ser mantida distante do bem e do mal.

Em 2014, você apresentou ?Eu não sou bonita? no Brasil. Na nova peça você também aborda o tema da beleza e do abuso, mas o que mudou na sua escrita de lá para cá?

Talvez, até aqui, eu tenha contado uma única e longuíssima história, e nela há uma divisão entre o político e o mítico, entre o material e o espiritual, entre a lei do estado e a lei da beleza. Neste exato momento estou interessada em falar da vida do espírito, do invisível. Acho que a alma humana não pode ser explicada através da política, do materialismo, é muito mais complexo. É preciso mergulhar nos movimentos mais fundamentais do homem: o nascimento, o sexo e a morte. Eu me interesso pelo que ocorre com o ser humano quando ele fecha a porta da sua casa, quando ele está submetido a essa perspectiva invertida, a do espírito. Não quero criar obras intelectuais, mas espirituais, algo que nos ponha em contato com os fantasmas. Tenho trabalhado com formas mais simbólicas. E gostaria de, na minha próxima obra, fazer algo belo, simplesmente belo, reivindicar o poder da beleza.