Opinião

Coluna Direito da Família: Fantasmas do cotidiano

O direito brasileiro sofre influências desde a sua origem, abraçando doutrinas deveras desenvolvidas em outras terras. Embora seja costumeira a submissão aos ares europeus, pelas influências romano-germânicas, vislumbram-se aproximações com o direito costumeiro anglo-saxão. Enquanto o primeiro fundamenta-se na lei como a fonte primária do direito (daí porque a “inchaço legal”), o segundo, nas reiteradas decisões dos tribunais.

Contudo, o que chama mais atenção são os termos estrangeiros que, no processo de importação, sequer são abrasileirados. Remanescem, pois, os termos em língua estrangeira, dificultando sobremaneira a interpretação, especialmente pelas pessoas mais leigas. Reflexo da realidade cotidiana, sentida na pele dos mais humildes, ganha rótulo elegante, sem a antropofagia da cultura estrangeira, aventada pelos modernistas literários, um século atrás.

Os contornos desse costume são amplificados na era digital pós-moderna, em que ganha relevo a valorização do aqui e agora (carpe diem), em uma perspectiva hedonista mais intensa, atrelada à hiper-realidade e a subjetividade e ao multiculturalismo. Esses são os ingredientes do dia-a-dia do século XXI, em que é notória liquidez dos relacionamentos, como a uberização do trabalho e tinderização do afeto.

No âmbito do direito de família, tem ganhado espaço a discussão sobre o que se convencionou denominar de “ghosting”, termo derivado do inglês “ghost” (fantasma). Explica a realidade do desaparecimento repentino em um relacionamento, quando o parceiro torna-se fantasma, sem deixar explicações ou vestígios. No mundo virtual, simplificam-se os indivíduos e os mecanismos que supostamente aproximam, podem afastar do contato interpessoal.

Nesse sentido, em especial nos relacionamentos virtuais, têm sido uma realidade o fato de não responder mais o parceiro, ignorar o sentimento alheio. Assim, normaliza-se a falta de empatia para “livrar-se” de alguém, como se as pessoas fossem descartáveis.

Certo que não existe obrigação de estar em um relacionamento, haja vista o enfoque jurídico nos mecanismos para a realização pessoal da dignidade humana. Especialmente diante de relacionamentos que possam causar danos, não se espera a continuidade dos mesmos. A questão crucial no “ghosting”, portanto, trata de não haver um encerramento ou fechamento de um ciclo, desprezando-se, assim, o afeto envolvido, o que acarreta danos psicológicos.

Esses danos, em regra, não são indenizáveis, salvo se comprovado prejuízo financeiro, diante da configuração de estelionato. Afinal de contas, o direito de família deve estar embasado na autonomia privada, como mola propulsora dos relacionamentos afetivos. Dessa forma, não caberia ao Direito tutelar tal condição, visto não ser possível andar na contramão e obrigar duas pessoas ficarem juntas contra a vontade. Todavia, ao Direito cumpre tutelar a proteção dos direitos mais caros aos indivíduos e garantir a conduta ética nas relações intersubjetivas.

Não se pode obrigar ao amor, mas os indivíduos devem manter responsabilidade nos relacionamentos, de qualquer espécie. É o que se chama de responsabilidade afetiva.  Como ensinou Antoine de Saint-Exupéry, cada um deve ser responsável por aquilo que cativa. De modo que deve haver prudência pelos sentimentos alheios, zelando pelo bem-estar recíproco.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas