Cascavel - Seria a previsibilidade o grande tendão de Aquiles da humanidade? A filósofa Hannah Arendt compreende que a imprevisão é o que garante a potencialidade do novo, que permite a ação do indivíduo e da coletividade. É aqui que agiria a criatividade que permite a fabulação sobre o futuro, como nas obras distópica clássicas escritas no século passado – buscava-se imaginar uma sociedade futurística. O meio digital, tão fresquinho na história da humanidade, podia ser imaginado (não com exatidão) e foi evidenciado em obras como “Farenheit 451” de Ray Bradbury ou “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley.
O que talvez não estivesse bem claro naquele momento eram os impactos disso nas relações familiares. Nas referidas obras, a sociedade era alienada, com indivíduos que não se conectavam, embora se entregassem de forma excessiva aos entretenimentos tecnológicos, em que a informação era manipulada e controlada e uma sociedade de valores desvirtuados. Não parece algo tão estranho na atualidade…
A tecnologia que prometeu aproximar é um poderoso instrumento de afastamento nas relações familiares, que expõe os vulneráveis a perigos no cyber espaço. Contudo, é relevante considerar sua potencialidade nos aspectos judiciais, no tocante à produção de provas, em relação a bens digitais ou, ainda, em relação à dinâmica familiar em questão de guarda e convivência.
Vem crescendo a admissão de provas digitais nos processos familiares, como capturas de tela, mensagens, e-mails ou mesmo postagens em redes sociais, no entanto, é imprescindível a cautela dada a possibilidade de manipulação e fraude dessas provas. Em tese, o comportamento online seria reflexo da conduta da “vida real”, daí porque se utilizaria da teoria da aparência para majorar alimentos quando os genitores ostentam em rede social enquanto mendigam às portas do judiciário, por exemplo.
Uma grande preocupação diz respeito à autenticidade dessas provas que venham a ser apresentadas, sendo ainda o mais confiável o que se denomina de ata notarial (documento expedido pelo tabelião em que se confere a veracidade das informações). Se a forma da coleta de provas de impressão digital foi crucial em casos emblemáticos como o de O.J. Simpson, na década de 1990, com maior razão há que se considerar a forma de coleta e armazenamento de provas digitais.
Outro ponto relevante diz respeito aos bens e propriedades digitais, dado seu valor econômico, especialmente em relação à partilha de bens, com divórcio, ou com o inventário, em caso de falecimento. Por não terem materialidade e serem extremamente volúveis, detêm complexidade desde a aferição de valor até o acesso desse patrimônio quando criptografado. A previsibilidade, aqui, faz-se crucial, com a inclusão em testamento ou acordo pré-nupcial, com informações claras sobre a localização dos bens e sobre as chaves privadas – o que parece um pouco ingênuo dada a facilidade de manipulação digital e a cena comum de fraude e ocultação patrimonial em sede de divórcio. As velhas estratégias podem ter apenas ganho uma roupagem com pixels e giga bytes.
Além disso, a tecnologia redimensionou aspectos sobre guarda e convivência de filhos menores, na medida em que permite o contato constante com os pequenos independentemente da distância. Porém, essa facilidade não está isenta de riscos, como impactos à privacidade (inclusive do ex-cônjuge), monitoramento constante que pode gerar um ambiente tóxico, ou, ainda, o uso dessas ferramentas como aliadas em condutas ilícitas como a alienação parental, através de controle emocional e isolamento. Sob a fachada de liberdade aparente, criar novas formas de comunicação pode ser um meio de criar novos mecanismos de controle e manipulação.
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito