Cascavel - No século XIX, José de Alencar deve ter chocado a sociedade com a inversão dos papeis econômicos e das convenções sociais através de “Senhora”. Ilustrou como o controle financeiro pode ser utilizado para ser instrumento de poder e vingança nas relações conjugais, o que mais tarde foi tecnicamente tratado pela Lei Maria da Penha enquanto uma das formas de violência doméstica: a violência patrimonial.
A principal característica dessa forma de violência está no estabelecimento de empecilhos para a autonomia financeira da vítima, como a retenção de toda a remuneração para administração exclusiva por um dos cônjuges (geralmente pelo homem, já que as mulheres foram vistas por muito tempo como incapazes de administrar a vida financeira e patrimonial).
Não são raros os casos em que os abusos – em diversas formas – se estendem para o âmbito processual, em que o sistema judicial é utilizado de forma indevida para prejudicar a vítima ou dificultar que esta obtenha justiça, de modo que a violência se usa sistema jurídico como ferramenta de controle. Por isso, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero também reconhece a violência patrimonial a partir de condutas como o não pagamento de pensão aos filhos em comum, podendo fazê-lo, com o intuito de punir a vítima.
Ademais, salta aos olhos a cegueira deliberada dos poderes estatais sobre a relação de violência doméstica e partilha de bens. Dada a desconexão de culpa para a realização do divórcio, desde 2010, não se adentra na discussão da quebra dos deveres conjugais quando presente a violência doméstica. Nesse caso, o direito até é tecnicamente correto, mas moralmente desconfortável, por ignorar o contexto e se fechar em si mesmo de maneira narcisística. Mais que isso, encaixota cada processo com seu rótulo (heranças do Iluminismo) e os separa, por que afinal de contas cada coisa é uma coisa, mantendo uma lógica de gênero, sem análise crítica.
Isso porque ao agressor é garantida a presunção de inocência, mas a vítima costumeiramente detém uma presunção não expressa juridicamente: a de que está mentindo. Eventual dano indenizável dessa violência, apesar de independer de instrução probatória específica, na maior parte das vezes agoniza em valores irrisórios que reforçam a impunidade ou se vê ineficaz pela conduta deliberada do agressor de livrar-se do patrimônio.
Salutar mencionar, ainda, que é comum que as dívidas – até a data da separação de fato/corpos – também sejam partilháveis em sede de divórcio. Cobrança de dívidas, posteriores à data de separação de fato, (mesmo que anteriores à decretação/homologação do divórcio), realizadas como meio de coação, retaliação ou para causar prejuízo financeiro injusto ao ex-cônjuge ou promover apropriação indevida, também pode configurar violência patrimonial.
Essa forma de violência é uma das faces mais capciosas da desigualdade de gênero ao reforçar a ideia de que a mulher é incapaz de autonomia, especialmente financeira. E o próprio sistema no mais das vezes não enxerga (talvez seja conveniente não ver) a profundidade de suas cicatrizes.
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito