O PASSAPORTE DA DESIGUALDADE

Cascavel e Paraná - À primeira vista, parece uma questão burocrática: um simples documento para garantir a segurança da criança. Mas basta um caso concreto para perceber que o papel assinado é, na verdade, o retrato das assimetrias que sobrevivem à separação. A autorização deveria ser um instrumento de proteção. Em muitos processos, porém, transforma-se em instrumento de controle. O genitor que não convive, mas se recusa a assinar; aquele que usa a assinatura como moeda de barganha; o pai que desaparece, mas reaparece no cartório quando sente que pode impedir um projeto da mãe.


A lei, pensada para proteger a criança, acaba se tornando um obstáculo à sua liberdade de circular com quem de fato a cuida.

O Estatuto da Criança e do Adolescente exige autorização judicial quando apenas um dos pais viaja ao exterior com o filho. O problema é que o texto legal não distingue contextos: trata como iguais famílias que vivem relações cooperativas e aquelas marcadas por abandono, litígio ou violência.
Essa indiferença jurídica custa caro — e, geralmente, quem paga é a mulher que tem a guarda.

A autorização, nesses casos, não é um simples ato formal, mas o prolongamento da relação de poder que o fim da conjugalidade não dissolveu.
Negar a assinatura significa, muitas vezes, negar o direito de a mãe trabalhar, estudar, visitar familiares. Transforma-se em uma forma silenciosa de violência institucionalizada pela letra da lei.

Os tribunais, sensíveis a essa realidade, têm admitido a concessão judicial da autorização em hipóteses de urgência, guarda unilateral ou risco de prejuízo ao menor. Ainda assim, o caminho é lento, especialmente quando a citação do outro genitor se converte em mais uma etapa de protelação.
O paradoxo é evidente: o mesmo Estado que reconhece a mãe como principal cuidadora exige dela o consentimento de quem, muitas vezes, abdicou de cuidar.

Em famílias binacionais, a autorização se torna ainda mais complexa: há exigência de tradução juramentada, reconhecimento em consulado, e o risco de enquadramento em “subtração internacional de menores”, nos termos da Convenção de Haia. Mesmo quando o deslocamento é temporário, a mãe é frequentemente tratada como suspeita de sequestro e não como responsável legítima.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que a autorização para saída ou retorno de menores não é um mero ato burocrático ou formal, mas aparece como junção de direitos da criança, proteção da mãe e justiça de gênero. Isso porque reconheceu que a violência doméstica contra a mãe (mesmo que a criança não tenha sido agredida diretamente) pode configurar risco grave e, assim, permitir a recusa de retorno da criança ao país de origem.

A proteção da infância não pode ser confundida com tutela patriarcal.
Garantir o direito da criança à convivência familiar não significa manter amarras formais com quem já se retirou da vida concreta dela.


A legislação precisa, urgentemente, distinguir a autorização como cuidadoda autorização como poder, sob pena de perpetuar a dependência simbólica das mulheres que criam sozinhas. Afinal, viajar não é fuga.


É exercício de liberdade, inclusive da criança, que tem direito de ser acompanhada por quem a cria, e não apenas por quem a gerou.

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito