Cores e barulhos demais para o silêncio da toga
Cascavel e Paraná - Há bolsas que não cabem sob a mesa de audiência. São grandes, estampadas, com restos de lanche, fraldas esquecidas, massinhas de modelar endurecidas, bonecos sem braço. Têm cheiro de criança e cor de afeto. Essas bolsas carregam o mundo como ele é: barulhento, urgente, afetivo, múltiplo. Mas o mundo do direito não quer cor, cheiro ou excesso. O sistema jurídico tem um gosto refinado por neutralidade. Prefere o cinza ao colorido, o controle à espontaneidade, a secura à contradição.
Pasme, existe um código de vestimentas para o trânsito de pessoas nas “unidades judiciárias” e nele uma fixação quase exclusiva sobre as roupas femininas ou pelas que não se atentam à estética das elites, estando “adjetivadas” pelo proibido. Há, também, um código não escrito que diz: Não use batom vermelho. Não fale alto. Não demonstre afeto. Não pareça cansada. Não tenha filhos — ao menos, não os mencione. E, pelo amor à liturgia, guarde sua bolsa cheia de brinquedos.
Isso não é decoro, é controle. É uma pedagogia do poder. O minimalismo institucional não é neutro: é masculinizado, eurocentrado, elitista. Requer tempo, distância, assepsia. Só consegue ser alcançado por quem pode e quer performar a invisibilidade de si.
Mas há quem não possa se descolar da vida para habitar esse modelo. E para estes sujeitos que não estão no centro da economia cultural seus corpos e vozes estão sempre em desacordo com a estética do tribunal. Porque o mundo que carregam não cabe na pasta preta de couro fino. Ele transborda em sacolas coloridas, vozes múltiplas e marcas de cuidado.
Isso se estende também ao controle da existência dessa vida para além da liturgia imersa na busca da perfeição estética, artística e de performance – que facilmente seria útil a movimentos totalitários. Porque se não há encaixe com o padrão exigido, por que ser mantido nele? Não à toa, advogados que vivenciam o cuidado durante uma audiência virtual, por exemplo, não sofrem a mesma reprimenda que advogadas que fazem sustentação oral em meio ao caos infantil. Enquanto um recebe compaixão, a outra, contenção pela falta de postura adequada. Se não tira um coelho da cartola, pelo menos arrume uma solução em sua bolsa fora do padrão minimalista, ora bolas!
No ambiente judiciário, o código de vestimenta é instrumento de exclusão simbólica. Estéticas não hegemônicas são lidas como desvio: “falta de compostura”, “excesso”, “inadequação”. Em disputas familiares, isso pode significar a diferença entre ser ouvida ou deslegitimada, entre ser vista como pessoa cuidadora ou instável.
Esse contexto minimalista – do decoro e da liturgia – representa um padrão de consumo e presença altamente regulado, que demanda tempo, recursos e distanciamento emocional e material das urgências da vida cotidiana, não cabível a todos (e muitas vezes, explicitamente vedado aos que mais precisam ocupar esses espaços). É uma ferramenta de poder que reforça hierarquias e está menos suscetível a padrões diferentes.
Criticar a estética minimalista do judiciário não é defender o caos visual ou sonoro. É denunciar que essa estética, sob o pretexto da ordem, serve à manutenção de um mundo comum estreito, onde apenas alguns modos de existir são considerados legítimos e outros são definidos como não pertencentes àquele espaço, ainda que de passagem.
Dra. Giovanna Back Franco
Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito