RIO – É comum a constatação de que nós, brasileiros, pouco conhecemos da cultura do resto da América Latina. Um dos maiores fenômenos da música argentina de todos os tempos, contudo, é um sujeito tão pouco dado à exposição que mesmo em países vizinhos e que têm o espanhol como língua oficial ele é pouco conhecido. Trata-se de Carlos “Indio” Solari, hoje um senhor de 68 anos, que há décadas atrai uma multidão (crescente) para seus (raros) shows.
A idolatria é tanta e mobiliza tanta gente que seus espetáculos são proibidos na capital federal. No último sábado, a situação saiu de controle: um show em Olavarría ? cidade a 350 km de Buenos Aires, de 90 mil habitantes ? terminou com dois mortos pisoteados e mais de dez feridos. Na manhã desta segunda, pelo menos nove seguiam hospitalizados, segundo o jornal “La Nacion”. Segundo o prefeito, estavam sendo esperadas 200 mil pessoas, mas o que se viu foi uma “avalanche humana”. Difícil precisar quantos fãs se deslocaram para lá ? alguns falam em 350 mil, outros em 500 mil. As imagens mostram gente de todas as gerações, com direito a crianças de colo e portadores de deficiência. Logo foi criado no Facebook a página “Recital del Indio ? Donde estás?”, para as pessoas buscarem o paradeiro de seus familiares.
Mas afinal, por que o som de Solari faz a cabeça de tantos argentinos? O cantor formou em 1976 a banda Patricio Reys y sus Redonditos de Ricota ? em pleno ano da consolidação da ditadura militar no país. Apesar de surgir na clandestinidade, com o rock argentino chegando a seu auge nos anos 1980 ela se torna extremamente popular. Mas sem fazer concessões: nunca apareciam na televisão, sempre foram avessos a entrevistas e desde o começo assumiram um perfil independente, com um selo próprio para lançar seus discos.
Tudo isso transformou Solari em um personagem cult, uma espécie de mito que atravessou gerações. Mas, diante de tanto mistério, tal popularidade que o faz ser tão conhecido quanto um Maradona na Argentina não ultrapassa muito os limites do país ? chega ao Uruguai, e olhe lá.
“MISSA RICOTERA”
As notícias de Olavarría neste fim de semana são vistas por alguns argentinos como uma tragédia anunciada. Afinal, está longe de ser a primeira vez que “missa ricotera” acaba com graves incidentes. Em 1991, ainda com os Rendonditos, um jovem de 17 anos foi detido pela polícia durante um show, acabou sendo torturado e morreu alguns dias depois. A violência do caso exacerbou o “ricoterismo”, uma espécie de religião musical, atraindo milhares de fãs ao rock puro e às letras contestatórias de Solari.
A banda original durou 25 anos, até 2001. Solari formou um novo grupo, Los Fundamentalistas del Aire Acondicionado, e assumiu um som mais alternativo, com direito ao uso de samplers. Apesar da mudança, manteve no repertório dos shows alguns dos sucessos dos Redonditos e segue discretíssimo – comunica-se com o público basicamente pelo blog Redonditos de Abajo, e em 2013 autorizou a produção do documentário “Piedra que late”, que mostra os bastidores do show no Hipódromo de Tandil, realizado em 2011. Assim, a idolatria se manteve intocada. Piedra que Late – sobre Indio Solari
Na verdade, chegou a aumentar no ano passado, quando Solari anunciou que sofre de Mal de Parkinson. A expectativa de ver o que possivelmente seria o último show do cantor mobilizou ainda mais gente que o normal.
Pouco dado a falar sobre política, Solari chegou a manifestar apoio a Cristina Kirschner anos atrás. Mas em geral prefere o silêncio. Após a tragédia do fim de semana, manifestou-se por sua conta no Facebook para dizer que ele e sua equipe “estavam muito tristes e preocupados”, manifestando apoio às famílias que perderam seus entes. Depois, atacou a imprensa: “Uma vez mais, de forma irresponsável e mesquinha, os meios estão vendendo pescado podre. Por favor não acreditem em tudo que se diz”.