Cotidiano

Quando direitos garantidos pela Constituição são trocados por votos

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PRAIA NORTE (TO), AUGUSTINÓPOLIS (TO) e SÃO PAULO ?Sentada em uma cadeira de plástico na varanda de cimento queimado de sua casa em Praia Norte, no Tocantins, Neusa Braga de Lima, de 58 anos, lembra o dia em que o candidato a prefeito e ex-diretor do hospital regional da cidade vizinha Augustinópolis, Ho-Chi-Mim Silva de Araújo, apareceu de surpresa:

?Eu tava lá na cozinha e o carro parou bem aí. Ele chegou, entrou mais o Zé Antônio, pai desse rapazinho aqui que é meu genro: ?Nós viemos aqui conversar sobre voto com a senhora?.

Dona Neusa respondeu de bate-pronto:

? Eu disse: ?Pode conversar, que eu já vou desenganar você. Porque na verdade eu não voto em você.?. Ele ouviu sentado, bem pertinho de mim, de cabeça baixa ? relatou.

Foi quando o parceiro da visita do candidato refrescou a memória da senhora:

? Mas e a cirurgia que ele fez pra vocês, hein? ? perguntou, referindo-se ao procedimento a que foi submetido no fim do ano passado um dos seus filhos, de 26 anos, que teve um rim retirado no hospital gerido pelo então candidato.

A senhora subiu nas tamancas. Lembrou que já votara em Ho-Chi-Mim quando ele se candidatou a deputado estadual em 2014, então já considerava a ?paga? a cirurgia, feita em hospital público e custeada com dinheiro do Sistema Único de Saúde (SUS).

2016 942288355-201609301840487395.jpg_20160930.jpg? Quando eles foram saindo, Ho-Chi-Mim virou e disse: ?A coisa mais ruim que eu fiz foi ajudar as pessoas?. Ele veio jogar a cirurgia do menino aqui na minha cara ? resigna-se a mulher, que vive na cidade de 7 mil habitantes situada na divisa de Tocantins com Maranhão, um dos IDHs mais baixos do país.

O exemplo é uma das facetas mais perversas do mercado de compra de votos no Tocantins, onde direitos previstos na Constituição ? como saúde e moradia digna ? entram na barganha pelo compromisso do eleitor de apoiar um determinado candidato.

A centenas de quilômetros de Augustinópolis, o aparato de saúde pública e propriedades municipais também foram colocados a serviço dos interesses de um candidato a prefeito. Há pouco mais de uma semana, a Polícia Federal deflagrou em Palmas e Lajeado, cidade da região metropolitana da capital tocantinense, a Operação Colheita, que conduziu coercitivamente todos os vereadores de Lajeado e um dos candidatos à prefeitura local por corrupção eleitoral.

A troca de direitos da cidadania por apoio a políticos que deveriam promover esses direitos por dever de ofício parece mais cruel no cenário em que se desenvolvem. Em Augustinópolis, o atendimento nos postos de saúde é precário e o desemprego produz cenas como a da tarde da última quinta-feira, quando O GLOBO esteve na cidade: quem não estava nas rodinhas de cadeiras nas calçadas em frente às fachadas das casas circulava com bandeiras de candidatos no esforço da última semana de campanha.

Dona Neusa não foi a única a passar pelo constrangimento, de acordo com o Ministério Público de Tocantins, que apresentou Ação Civil Pública por improbidade administrativa e corrupção eleitoral contra Ho-Chi-Mim, o político de práticas clientelistas que sustenta nome de líder revolucionário comunista vietnamita.

A PF investiga o caso e vem levantando nomes de outros beneficiários das cirurgias. O filho de dona Neusa queixou-se em seu perfil do Facebook da iniciativa do candidato junto à sua mãe, deixando a cidade em polvorosa: ?Que tipo de ser humano é esse que ajuda alguém em caso de doença e cobra o voto depois??, escreveu.

Ho-Chi-Mim nega a acusação e argumenta que a população de Praia Norte foi atendida por se tratar de município próximo do Hospital Regional. Para ele, a motivação é política:

2016 942288721-201609301842427397.jpg_20160930.jpg? Isso não procede, segundo o próprio Ministério da Saúde. A questão do mutirão se estendia a todos os municípios do Bico do Papagaio (região que inclui o norte do Tocantins). Esse trabalho eu desenvolvo desde 2011, quando fui diretor pela primeira vez do hospital.

Enfermeiros do Hospital Regional de Augustinópolis, onde as cirurgias eram feitas, apresentaram um relatório com a relação de pacientes da cidade operados em mutirões que desrespeitavam as regras de priorização do SUS. As principais cirurgias eram relacionadas a controle de natalidade e foram feitas até cesarianas antes do fim das gestações.

? Não era um mutirão para atender à região, mas à cidade onde ele era candidato. O hospital não tem dinheiro para comprar medicamentos e insumos básicos, a alimentação de pacientes e funcionários é bancada por empresários. Ele usava até a estrutura do plantão para fazer uma escala extra de profissionais e realizar os atos que queria ? denuncia a chefe da enfermagem Ana Izabel Salomão de Souza.

Funcionária da unidade de saúde, ela reuniu registros de folhas de pagamento de médicos que faziam as cirurgias supostamente eleitoreiras, que eram anotadas como plantões extras.

Quando denunciou o caso ao Ministério Público, Ana Izabel esperava ter sua identidade preservada. No entanto, depois que o caso foi publicado na imprensa local, a origem das denúncias foi revelada.

Outros três médicos do hospital, também candidatos em cidades próximas, foram acusados de incluir nos mutirões pacientes dos respectivos domicílios eleitorais. Ana Izabel começou a receber cartas onde era lembrada de como é perigosa a estrada que liga Augustinópolis (TO) ? cidade vizinha a Praia Norte e onde está o hospital regional a Imperatriz (MA), onde vive. Mas ela não se arrepende de expor a situação.

? Não tem outro jeito de a gente fazer para eles entenderem que as coisas não são desse jeito e eles não são os donos desse mundo.

Já em Lajeado, o esquema de fraude eleitoral foi descoberto depois de cinco meses de investigação. De acordo com o promotor do caso João Edson de Souza, o médico Tércio Dias Melquiades (PSD), candidato da situação em Lajeado, dava receituários médicos falsos a moradores de outros municípios para que eles pudessem pedir a transferência de domicílio eleitoral para o município e votar nele. Em troca, recebiam um pedaço de terra pública irregularmente loteado pela própria Prefeitura. No total, 258 lotes seriam oferecidos a eleitores que aceitassem se comprometer em apoiar Tércio com os votos da família. O valor de cada área, com cerca de 180 metros quadrados, gira em torno de R$15 mil.

? Começaram a surgir muitos pedidos de transferência de domicílio eleitoral. Todos eles eram embasados com documentos de um mesmo posto de saúde, com assinatura do Doutor Térsio. Verificamos que os documentos eram falsos. Se as transferências fossem efetuadas, o município acabaria tendo mais eleitores do que habitantes. Quando interpelamos quem pedia transferência, eles admitiram que as ações foram motivadas pela promessa dos lotes ? afirma Souza.

A prefeita e madrinha política de Térsio, Márcia da Costa Reis Carvalho, conhecida como Márcia Enfermeira (PSDB), não é investigada no processo mas já enfrenta outras ações de improbidade administrativa e chegou a ter os bens bloqueados pela Justiça depois de ser acusada de causar um prejuízo de R$10 milhões ao município. Ambos negam irregularidades.

* Enviado especial