OPINIÃO

Coluna Direito da Família

Territórios de disputas: Distopias literárias ou realidades jurídicas…

Cascavel e Paraná - Lições literárias que aparentavam distópicas ou metafóricas têm parecido mais próximas recentemente. Se o Grande Irmão de “1984” ou a “Soma” de “Admirável Mundo Novo” não remanesceram tanto tempo como meras ficções, o imperativo do silêncio feminino e do controle sobre elas do “O conto de Aia” também encontra reflexos na realidade. Não precisa ir muito longe, até 2005, havia a adjetivação de “mulher honesta” no Código Penal Brasileiro – mesmo o Brasil sendo signatário de diversos tratados internacionais sobre direitos humanos (inclusive em relação às mulheres).

Porém, assim como Dorothy, em “O mágico de Oz”, as mulheres puderam compreender que carregavam em si o poder de se fazer ouvir, mesmo que lhe dissessem que o direito não lhes era acessível. Realmente, ele pode ser instrumento de opressão travestido de legalidade, defendido por aqueles que se beneficiam das regras jurídicas (sob o manto da idoneidade) e do silêncio de certos grupos. No sistema jurídico, não faltam exemplos para a desconfiança sobre suas vozes – vinculada unicamente ao gênero – mesmo que sejam muitas vozes a dizer a mesma coisa.

Ainda assim, elas se afirmam como protagonistas da transformação. Foi assim na constituinte de 1988, quando o chamado “Lobby do Batom” uniu mulheres de diversas ideologias partidárias pela inclusão de direitos das mulheres na Constituição que nascia. Desse mesmo modo, a Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres prima pelo diálogo a partir da diversidade para o desenho de políticas que garantam o avanço da igualdade de gênero.

Isso se materializou na promulgação de duas leis relevantes: a lei que amplia a licença maternidade por complicações no parto e a lei que institui a semana nacional de conscientização sobre cuidados com as gestantes e mães. A primeira altera alguns aspectos da licença maternidade e do salário maternidade em casos de internações superiores a duas semanas do recém-nascido por decorrência do parto. Nesse caso, a contagem do prazo para os benefícios não se inicia com o nascimento, mas com a alta hospitalar – o que já era um entendimento dos tribunais desde 2022.

Essa legislação se soma às discussões sobre a licença paternidade e a aplicação da licença parental para casais homoafetivos, pelo reconhecimento da diversidade das formas de família – mas que permanece em decisões judiciais diante da mora legislativa em transformar essa realidade em lei. Contudo, o direito ao cuidado vem ganhando espaço, especialmente após o seu reconhecimento como direito autônomo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assim, o cuidado deixa de ser apenas um gesto íntimo da família e se afirma como caminho coletivo para uma sociedade mais justa.

A segunda legislação visa ao fortalecimento de gestantes, mães e crianças em fase de grande vulnerabilidade. Prevê vários mecanismos de incentivo, informações e divulgação sobre os direitos daquelas e a proteção integral da primeira infância, com ênfase nos primeiros mil dias de vida. Há destaque também ao incentivo ao cuidado paterno nesse período e a inclusão do pai nos serviços que atendam gestantes e crianças. Apesar do avanço na atenção a situações de maior vulnerabilidade, ou de pessoas com deficiência, a lei ainda carrega pitadas de conservadorismo e que desconsidera a situação de muitas mulheres.

Primeiramente, ao enfocar na estrutura familiar tradicional, limita o alcance a outras conformações familiares e outros mecanismos de cuidado (que gera debates diante do ativismo trans para a assunção da questão de gênero – e não do sexo biológico – para a definição do ser mulher). Segundo, há uma camuflagem para a identificação do feto enquanto sujeito de direitos (especialmente após os trâmites da alteração do Código Civil), já que os mil dias de vida contabilizam também o período intrauterino.

Desse modo, o que parecia distopia literária revela-se como disputa concreta no campo jurídico e político: a tentativa de silenciamento das mulheres e o controle de seus corpos encontram novos contornos sob a roupagem da proteção, ao mesmo tempo em que a resistência feminina segue abrindo fissuras nesse edifício normativo. Entre avanços reais e armadilhas simbólicas, o direito ao cuidado, a maternidade digna e a pluralidade das formas de família seguem como arenas de embate, em que as mulheres reafirmam seu protagonismo histórico, recusando-se a ser apenas objeto das normas e se constituindo, cada vez mais, como sujeitos de direitos humanos e de transformação social.

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito