Cotidiano

Copacabana ainda mantém seus inferninhos, mas de forma discreta

2011 409238185-2003090216079.jpg_20160627 (2).jpgRIO ? Paulo Gilvan Bezerril tem 56 anos e dedicou, fielmente, mais da metade desse tempo aos clássicos bares e boates quentes de Copacabana. Daquelas noitadas no lado ogro da princesinha do mar, ele guarda memórias bem vivas, com a graça de quem tangenciava qualquer amarra social: o cheiro do tabaco, do perfume barato, do uísque forte. Tudo se misturava numa atmosfera inebriante, mesclada por música alta e vozes sedutoras. Era lugar para bater ponto toda semana, sugere o antigo morador do bairro, hábil em desenrolar uma espécie de psicologia de bar com meninas generosas. Muitos desses recintos fecharam as portas, mas ainda está lá, no número 185 da Avenida Princesa Isabel, a famosa La Cicciolina, alegria dele e de outros rapazes da época em que a boemia mostrava seu auge, especialmente na década de 1980.

Sem o reluzente letreiro em néon e com uma fachada bem mais discreta, ela, a tradicional Barbarella (Rua Ministro Viveiros Castro 24) e o Café Sensoo (Avenida Princesa Isabel 7) são remanescentes redutos do entretenimento adulto, hoje sem grandes extravagâncias. Outras, como a Kalabria (na Rua Belfort Roxo 88) ? que já foi Pussy Cat e Bar Sem Vergonha antes de voltar a ser night club ? e a Dolce Vita (na Avenida Atlântica s/nº), onde funcionava a antiga Holiday, mantêm suas bases na região como discotecas convencionais, mas ainda com ar misterioso e atraentes a profissionais do sexo.

Assim como o público da Help e da Balcony, casas que ficaram famosas por receber quem procurava sexo e que fecharam as portas nos últimos anos, os frequentadores da boate Le Boy ficaram órfãos de seu segundo lar, voltado ao público LGBT e fechado temporariamente sob a justificativa de reforma. A retomada das atividades, prometida pelo proprietário francês Gilles Lascar para a véspera da Olimpíada, ainda é incógnita. São os sinais de um tempo em que o mercado dos chamados inferninhos apenas sobrevivem, diz um empresário que trabalha no ramo. Morador do bairro, ele pediu para não ser identificado e contou que começou a trabalhar em boates há 14 anos, seguindo os passos profissionais do pai. Entre as décadas de 1970 e 1980, segundo o empresário, havia cerca de 50 casas entre as ruas Princesa Isabel e Duvivier, todas responsáveis pelo movimento de um polo turístico bastante rentável.

? Existiam vários shows, de mágico, de anões, de samba, de dança, striptease e sexo ao vivo. Com o tempo, veio a Help, que se tornou a maior boate da América Latina. As casas foram fechando, falindo, e virando outros tipos de negócios. Vieram o celular, as termas, os sites de anúncios e, recentemente, os combos de vodca (tinder, happn, badoo etc), o que deixou a região mais fraca, e também o mercado como um todo. Tanto que vimos, recentemente, duas casas emblemáticas fecharem as portas: a Centaurus, em Ipanema; e a Termas 65, no Centro ? destaca.

Ele conta ainda que, em meados dos anos 2000, o número de boates reduziu para dez, além da Help, até chegar à metade, atualmente.

? Dessas remanescentes, a Barbarella e a La Cicciolina são as mais tradicionais, mas os shows grandiosos de samba e os espetáculos eróticos acabaram. O máximo que se vê hoje são as go go girls. Creio que o fracasso do negócio na região seja por falha no serviço e pela banalização do sexo, que ficou mais fácil. Hoje, uma puta é puta em qualquer lugar, no aplicativo, na rua, num restaurante ou em uma boate.

2016 918635688-201606231921391036.jpg_20160623.jpgMesmo assim, o público variado que frequenta os inferninhos restantes ainda vai de jovens de 18 anos a idosos de 90.

? Engana-se quem pensa que apenas homens feios e gordos frequentam esses espaços. Há uma enorme clientela de jovens bonitos com corpos em dia; de gringos jovens e elegantes ? garante o empresário, que é ex-proprietário de uma das boates remanescentes e ainda investe no setor.

Antigamente, o programa que ia do bar às boates era de deixar qualquer rapazote deslumbrado. O acesso a esse universo era até fácil para o então jovem Bezerril, que durante muitos anos morou no Hotel Plaza, abrigo da boate Hi-Fi. Mas a La Cicciolina ? templo dos stripteases, das performances no pole dance e dos shows de mulatas carnavalescas ? era seu destino certo.

? Aquele circuito em torno da Praça do Lido concentrava os night clubs. A La Cicciolina era o quintal da galera da minha faixa etária, era muito bombada; a noite sempre acabava lá. Chamavam a minha atenção as meninas que tinham necessidade de ter status, de trabalhar com arte, e falavam em ir para o exterior fazer carreira. Quem comandava a vez de cada uma com os clientes, a gerente do camarim, era chamada de tia por nós ? conta Bezerril.

Mesmo afastado, desde que se mudou para Miguel Pereira há dois anos, ele volta a Copacabana de tempos em tempos para dar uma ?nebulizada? nos ares. Diante do que restou, ele diz que a cultura de esquina ficou para trás. Os pontos de encontro ficaram escassos e a calmaria passou a reinar no local.

? Houve uma mudança de perfil, necessária por várias razões: a onda moralista, o aumento das doenças sexualmente transmissíveis e a própria violência urbana. Tudo isso acabou por deixar a cena mais careta, mas é inevitável. O lado transgressor dos bares ainda existe, mesmo que reinventado: fecha-se um botequim, abre-se uma pastelaria chinesa, por exemplo. Mas, hoje, para ver uma bonitona pelada, basta acessar a internet.

FAUNA NOTURNA E EFERVESCENTE

2012 528270872-2012061945857.jpg_20120619.jpgAo longo do tempo, o mapa do entretenimento adulto em Copacabana se redesenhou: desde o precursor cabaré francês Mère Louise, que funcionou no início do século XX na altura do atual Posto 6, onde hoje é o Hotel Sofitel; passando pelas famosas boates de striptease na Prado Júnior; pela Galeria Alaska, onde havia um famoso show de travestis nos anos 1980 e que hoje virou reduto evangélico; e, mais tarde, pela glamourosa Help, demolida para a construção do Museu da Imagem e do Som.

Esses e outros inferninhos semearam o lado underground do bairro que, com as boates menores, formaram um circuito visceral com os pés sujos e bares vizinhos. Era quando frequentadores de espaços como os tradicionais Cervantes e o Nogueira jantavam ao lado de stripers seminuas, lembra Fausto Fawcett, morador do bairro e andarilho fiel de um submundo que tanto já inspirou suas obras, como nas aventuras da personagem Kátia Flávia, prestes a virar filme. Seu contrato com o bairro, afirma, é vitalício:

? É como se estivessem lá os seres decaídos da vida. Havia o advogado junto com o mendigo, desembargadores bêbados, escritores; todas as classes se misturavam ali. E era bom. Por isso, os papos eram sortidos, variados, e isso dava um maravilhoso curto-circuito de humanidade desencapada, interessantíssimo.

Fausto traz na bagagem 30 anos na bebedeira, nos ?mundos e submundos?. Em 2008, porém, teve que desacelerar para resguardar a saúde do coração, já afetada.

? O início dos anos 2000, mas principalmente entre 1980 e 1990, foi um período bastante interessante, convulsivo. Tínhamos uma oferta ao vivo de uma fauna noturna de modo bem explícito e efervescente; era uma festa de rua que servia ao comércio convencional, ao clandestino e ao mercado sexual. Para quem escreve, como eu, era um prato cheio. Tudo isso continua, mas em menor proporção ? diz.

Segundo ele, no trecho do bairro onde foi criado (entre a Carvalho de Mendonça e a Rodolfo Dantas), havia cinco boates, com festa toda noite, discussões e quebradeiras.

? Era o verdadeiro beco das garrafas, apesar de não ter ficado famoso como tal. A gente varria tudo no dia seguinte de manhã para jogar uma bolinha, vindo do colégio, e as meninas é que eram as nossas goleiras. Isso é uma coisa inesquecível. Então, eu fui formado nesse meio de maneira muito natural. Eu é que fico chocado quando alguém fica chocado com isso ? afirma.

A fachada discreta dos night clubs atuais é algo que surpreende o antigo frequentador da noite.

? Na minha época, era tudo com néon chamativo. As pessoas que tinham uma vocação filosófica de rua, uma mistura de boemia, de dissolver o ego nas conversas e nas meninas e nas danças, a paixão pelo uivo dos lobos e das lobas, eram bastante saciadas. Essa festa ?Penny dreadful?, acho que está meio perdida. Agora, virou algo como clubes europeus. Você está andando e aí um cara te puxa, você não sabe o que tem ali, se é um açougue, um armarinho ou um night club. É um estilo camuflado de ser; acho engraçado ? diz.

PELA CORTINA, OUTROS SUBMUNDOS

2016 918634669-201606231915461022.jpg_20160623.jpgRedes sociais, aplicativos e afins não são vistos com apreço por Fausto Fawcett, autodeclarado um antropólogo informal. Ele gosta mesmo é de estar nas ruas, do encontro casual e de descobrir surpresas pelo caminho, especialmente em Copacabana, seu cenário ?estranho, heterodoxo e pulsante? predileto.

? Na Rua Hilário de Gouveia, tinha um edifício ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Copacabana, onde podia-se assistir ao striptease das meninas. Acho que, até por conta de questões econômicas e da internet, esse lado ganhou um outro formato e se expandiu. Hoje, as meninas, muitas ditas de família ou patricinhas, também fazem lá o seu striptease na webcam. Outra mudança foi na extensão da Prado Junior até a nossa querida Help, onde tinha o corredor que chamávamos de faixa de goza. Havia toda uma circulação ali. Agora está aí como ruína ? diz.

Lembrança boa vem dos anos 1950, completa:

? Naquele tempo havia muitos lugares nos quais a Dolores Duran podia exercer, digamos, sua feminilidade, como uma mulher fora do seu tempo. Copacabana sempre teve a fama de ser um bairro heterodoxo e meio off-off, apesar de ter também o conservadorismo. Ele tem tudo, na verdade; basta escolher a prateleira.

Ele conta que, após passar por um período de decadência, quando uma juventude intelectualizada migrou para Ipanema, Copacabana voltou a ser vista como um imenso point já nos anos 1980.

? Modéstia à parte, eu dei uma forcinha para esse novo auge do bairro. Nesse lugar, a pessoa é preparada para Hong Kong, Bombaim, Nova York, Moscou, São Paulo, Buenos Aires, o que quiser. É uma espécie de laboratório urbano e com oferta de cartões-postais de natureza, eróticos e uma fauna noturna profunda e de serviços ? opina o artista.

Copacabana mudou e os hábitos são outros, notadamente nos lugares de encontro:

? Houve uma mudança também gastronômica no bairro. A quantidade de pés-sujos ficou para trás; deram lugar a bistrôs, ?botecos de mulher?, e os cafés. Elas frequentam a noite muito mais hoje em dia. São os lugares que eu uso para compensar a boemia, bater um papo e escrever: não tem a bebida, mas tem a cafeína. Algum vício tem que ter.

Para ele, Copacabana já revela outros tipos de submundos, até mais pesados.

? Vemos uma garotada que também está botando para quebrar de uma forma meio laranja mecânica, com drogas e bombas anfetamínicas, num efeito camicase. Outra boemia está acontecendo; mas não tem poesia, tem agressividade. É submundo enquanto apelido para um certo tipo de consumo ou de vivência, mas não é sub porque todo mundo sabe de tudo ? diz o jornalista, que hoje trabalha no livro ?Cachorrada doentia?, sobre a faceta mais obscura do carioca e do brasileiro.

BAIRRO EM CONSTANTE MUDANÇA

2012 524693964-77-3325-03.jpg_20160628.jpgA noite de Copacabana e a boemia em geral exercem um grande fascínio também sobre o designer e escritor Marcus Wagner. Ele possui três obras sobre os temas: as graphic novels ?Soirée à Copacabana? e ?L?aube à Copacabana?, publicadas na França; e o livro ?Rio cultura da noite? (Casa da Palavra), escrito com o empresário Léo Feijó, do Grupo Matriz.

Para ele, as transformações do bairro vêm ocorrendo porque os costumes da sociedade mudam com o tempo.

? É sempre mais fácil analisar o passado do que o período atual. Mas o que percebo é que hoje a boemia não exige um ponto de encontro tradicional. Existe, inclusive, uma tendência a ir com os amigos para locais mais inusitados ? destaca.

Em seu livro, ele fala do auge das boates de Copacabana, entre as décadas de 1950 e 1960, época em que várias casas tradicionais dividiam o espaço em uma mesma rua. Na Avenida Princesa Isabel, por exemplo, havia as boates dos hoteis Plaza e Vogue, e a Drink.

? Era uma época em que a boemia era um ponto de encontro de todos. Não havia esse medo da violência de hoje, em que as pessoas ficam escondidas atrás de grades de seus apartamentos. Você podia caminhar tranquilamente do Leme ao Posto 6 às 4h e ainda corria o risco de esbarrar com Dorival Caymmi no meio do caminho ? afirma Wagner.

A vida cultural na noite também era forte. Com a proibição do jogo de azar no país, que resultou no fechamento dos cassinos, músicos e maestros que mais tarde se tornaram consagrados foram trabalhar nas boates.

? Tom Jobim e Johnny Alf, por exemplo, chegaram a tocar em boates. O berço da bossa nova foi muito influenciado por essa noite boêmia ? destaca.

Entre os momentos marcantes da noite do bairro, o designer cita o incêndio, em 1955, do hotel Vogue onde funcionava umas das boates mais famosas de então, na qual circulavam a alta sociedade carioca, artistas, intelectuais, políticos, sambistas, playboys internacionais, atrizes de Hollywood e vedetes do teatro revista. Cinco pessoas morreram no incêndio, incluindo o cantor americano Warren Hayes, que se jogou do edifício em chamas.

(Colaborou: Gabriel Menezes)