Cotidiano

?Tribunal digital? é visto com reservas por órgãos de defesa do consumidor

2010071279247.jpgRIO ? A proposta de criação de um ?tribunal digital? para mediar conflitos entre correntistas e bancos, apresentada pelo Banco Central, foi recebida com certo ceticismo, e algumas críticas, pelos órgãos de defesa do consumidor, que não chegaram a ser procurados pela autoridade monetária para discutir a ideia.

Para o diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), Bruno Miragem, embora toda iniciativa que vise a reduzir conflitos seja positiva, a principal iniciativa neste sentido deve ser a disposição dos bancos e outros grandes fornecedores com conflitos judicializados de cumprir a legislação e respeitar os direitos do consumidor.

? Desjudicialização e redução de conflitos se dá, antes de tudo, pelo maior cumprimento da lei por parte de fornecedores que sejam litigantes habituais. Sem isso, qualquer iniciativa é mais cosmética do que algo que de fato contribua com a efetividade dos direitos do consumidor ? afirma Miragem, ressaltando que qualquer iniciativa neste sentido deve ser voluntária e não pode caracterizar recusa ou restrição de acesso do consumidor ao Poder Judiciário.

A economista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ione Amorim, lembra que já existe uma iniciativa oficial de resolução de conflitos na fase pré-administrativa e pré-judicial, que é a plataforma digital consumidor.gov.br, com transparência de consulta para as partes. Potencializar esse canal e evitar que o conflito chegue à Justiça seria o mais racional e econômico, em vez de criar outro canal, afirma a economista. Além disso, completa Ione, os bancos já reconhecem ser os mais reclamados nos Procons e na Justiça, e o que eles têm de buscar é a prevenção desses conflitos, e depois a resolução:

? A iniciativa anunciada pelo BC, CNJ e bancos parece querer concorrer com o consumidor.gov.br e o sistema nacional de defesa do consumidor.

Como mostrou matéria publicada pelo GLOBO, quando estiver no ar, o sistema viabilizará acordos entre consumidores, bancos e empresas. O correntista precisará se cadastrar e fazer uma busca pela instituição com a qual deseja negociar. O banco terá até 20 dias corridos para responder e poderá entrar em contato com o cliente por telefone ou pelo sistema. O acordo será homologado por um magistrado diretamente na plataforma digital. As instituições financeiras já assinaram o acordo. Apoiaram a proposta, que reduzirá as despesas com as ações, mas com a condição de o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não divulgar qualquer tipo de ranking com números de recursos à Justiça. Falta apenas o BC assinar o acordo.

Há experiências similares em países como Inglaterra, Suíça e Alemanha. Porém, os acordos não são assinados pelos respectivos bancos centrais. No caso do Brasil, será a primeira vez no mundo em que a autoridade monetária estará à frente do mecanismo, apoiando e estimulando a adoção da mediação.

Direitos do consumidor em risco

Quanto ao risco de o consumidor sair prejudicado em seus direitos com essa alternativa à tradicional ação judicial, o diretor do Brasilcon afirma que esta é uma preocupação dos órgãos de defesa do consumidor. Segundo ele, em nenhuma hipótese, qualquer que seja a iniciativas de mediação ou decisão administrativa pode implicar na restrição a direitos do consumidor acessar o Poder Judiciário , que é um direito fundamental:

? A grande judicialização das relações de consumo tem por causa principal o desrespeito aos direitos do consumidor. Esta é a principal causa a ser considerada , especialmente pelos órgãos da Administração Pública e pelo Poder Judiciário. O Poder Judiciário é a última porta em que bate o consumidor, depois de ter negada sua pretensão ou mesmo sequer ser ouvido pelo fornecedor. Não se pode admitir que ele possa acessar esta porta e possa exercer um direito fundamental de acesso à justiça.

Miragem lembra, no entanto, que a grande litigiosidade do setor bancário não se deve necessariamente a uma maior facilitação de acesso ao Judiciário, mas é preciso ter em conta também os procedimentos dos bancos no seu relacionanento com os consumidores .

? Se as questões terminam no Judiciário é porque, no mais das vezes, os clientes não encontram atenção a seus pleitos diretamente pelas instituições financeiras.

Redução do spread bancário

O diretor do Brasilcon se mostrou cético quanto à possibilidade de a medida, caso saia do papel, reduzir o spread bancário ? a diferença entre o custo do dinheiro para os bancos e o que é cobrado do cliente. A ideia é que uma mediação digital, com acordos que podem ser fechados por um clique e sem a necessidade de advogados, poderia reduzir o volume de ações judiciais contra as instituições bancárias. Com isso, os custos com a área jurídica despencariam e esta economia poderia ser repassada aos correntistas, reduzindo, assim, o spread bancário.

? Todas as iniciativas que foram apresentadas, nos últimos anos, com a finalidade de reduzir juros não cumpriram esta promessa. Assim ocorreu com a legislação sobre os bancos de dados e cadastro positivo ? enfatiza.

Elici Bueno, coordenadora executiva do Idec vai além. A seu ver, não interessa aos bancos a redução do superendividamento, mas sim reduzir os custos de seus departamentos jurídicos. Para a coordenadora do Idec, a proposta de mediação digital que se apresenta à população brasileira sob o argumento da redução de custos do judiciário e dos bancos, perde de vista a necessidade premente de, antes de qualquer iniciativa, orientar o consumidor sobre todo o processo de mediação.

? Pelos fatos, o Banco Central age da mesma forma, apoiando o setor ao contrário de apoiar um segmento do qual faz parte o consumidor. O CNJ quando se propõe a fazer uma mediação digital deveria olhar para o desconhecimento que o cidadão-consumidor brasileiro tem sobre o assunto. Será que o consumidor, no caso das relações bancárias possuem as informações para se posicionar em uma negociação? A mediação é pré judicial ou extrajudicial? Será que o consumidor sabe que o acordo homologado pelo juiz facilita o processo de cobrança litigiosa a favor dos bancos? ? questiona.

Ione Amorim, do Idec, ressalta que não há comprovação de nenhuma relação direta entre resolução de conflitos e queda de juros:

? O spread bancário ? são elevadíssimos e não dependem desse fator (custos judiciais). Todos sabemos que eles são instrumento de política econômica por parte do governo e de captação de receita por parte dos bancos. Ouvimos essa mesma história a todo momento: alta na inadimplência, quando instituiu-se o cadastro positivo etc. Mas nunca ouvimos falar que os juros caíram quando caiu a inadimplência ou quando cresceu o uso do cadastro positivo.

Ela acrescenta que, se existe uma relação entre juros e custos judiciais, seria interessante saber que percentual ela representa na composição do spread.

? Com dados claros ? e isso pressupõe metas públicas e compromissos de queda nos juros atrelados ao sucesso na resolução dos conflitos ? seria possível pensar se esse instrumento é efetivo? completa a economista.