É possível aferir avanços do processo civilizatório por meio de diversos elementos: tecnologia, expansão do conhecimento, aumento do tempo de vida do ser humano, grau de conscientização da sociedade, entre outros. E um dos aspectos mais evidentes no seio das democracias, para medir seu grau de eficácia, é a racionalidade.
Ao atingir uma boa pontuação no capítulo da racionalidade, um povo mostra que seu sistema de decisão ganha lógica, densidade, justiça. É quando o voto sufragado nas urnas, por exemplo, sai do coração e sobe à cabeça. Nesse caso, o eleitor evita a síndrome do touro, que pensa com o coração e arremete com a cabeça.
Esse introito convida-nos a imaginar que grau civilizatório retrata a atualidade brasileira. De pronto, pode-se garantir que ainda não somos uma sociedade racional, eis que nossa cultura é intensamente banhada por torrentes de emoção. A gente brasileira é calorosa, vibrante, toma partido em tudo, e costuma decidir mais pelo coração do que pela cabeça.
Devemos convir, no entanto, que se expande por essas plagas o conceito de autogestão, praticado em muitas nações, particularmente pela cultura anglo-saxã. Seu lema é: a pessoa define metas e objetivos e escolhe meios e formas para atingi-los. Nas últimas décadas, esse ideário tem ganhado força em nosso meio na esteira da organicidade social.
A sociedade brasileira, desde o fim de 80, sob a égide de uma Constituição garantidora de direitos individuais e sociais, avançou na trilha da pressão sobre os poderes, passou a criticar e a cobrar providências de dirigentes até chegar ao estágio mais recente – a mobilização social -, fenômeno que adquiriu força nos idos de 2013. A miríade de entidades intermediárias – gênero, minorias étnicas e raciais, defesa corporativa, categorias profissionais – deu mostras de força, indo às ruas, desfraldando bandeiras, levantando barricadas.
Chegamos, assim, ao atual momento, em que o país, dividido e polarizado, escancara a locução, quebra paradigmas, elege dirigentes sem usar as regras do velho jogo, enquanto contingentes agem de forma autônoma, não mais parecendo manadas de bois correndo no pasto. Concordem ou não, o País dá alguns passos na direção da racionalidade.
Por isso mesmo, não há mais condição de adotar práticas carcomidas: negociatas por baixo do pano, planos e projetos feitos a portas trancadas, burocratas plasmando reformas dentro de quatro paredes. A hora é do debate plural. A hora é de abertura das redomas. O ciclo que o Brasil atravessa exige total transparência.
Grupos nomeados por ministros ou secretários de Pastas, que se recusam a debater com a sociedade organizada projetos sob sua ordenação estarão sujeitos à execração social. O Brasil requer o jogo aberto de ideias, ponto e contraponto, verso e reverso. Quem se negar a entrar no novo tabuleiro do jogo será fatalmente condenado por absoluta desconexão com a realidade.
A propósito, algumas reformas estão nos laboratórios do Governo e do Congresso. Entre elas, em estágio final, a reforma da Previdência, que não merece entrar em lances de partilha ou nos ensaios de barganha dos congressistas. O país dela carece. E muito. Em elaboração está a reforma tributária. Todos os setores devem ser ouvidos. Não apenas a indústria. Vejam o que diz o economista Raul Veloso: “A reforma tributária mexe com a tributação de setores da economia, aumentando a de uns e reduzindo a de outros. (…) Mas esta é uma reforma em favor da indústria e contra o setor de serviços”.
Também vem por aí a reforma sindical. Montou-se um Conselhão do Trabalho, composto por tradicionais lideranças, mas se observa não haver participação de figuras representativas de novos segmentos da empregabilidade.
Esperemos, também, pelas reformas administrativa e política. A primeira só será eficaz se vestir o manto da racionalidade, com enxugamento de estruturas, ajustamento e treinamento de quadros, informatização e simplificação da burocracia, maior produtividade.
Já a reforma política, pelo menos no que diz respeito ao sistema de voto, precisa definir a melhor metodologia para encarnar a vontade popular. E todos esses ajustes não podem acontecer sem o crivo do cidadão. Afinal, ele é o verdadeiro dono do mandato dos representantes. Todo poder emana do povo. E em seu nome deve ser exercido.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação – Twitter@gaudtorquato