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Rogério Micale diz não temer lidar com nomes de peso

Aos 47 anos, com carreira feita quase que integralmente em divisões de base, o baiano Rogério Micale recebeu à última hora a missão de comandar a seleção que vai tentar o ouro olímpico. Um time cuja preparação ele comandou desde setembro do ano passado. Visto como entusiasta do jogo ofensivo e vistoso, ele descreve seus conceitos de jogo, valoriza o jogo coletivo, mas também o drible, e fala da expectativa por comandar, pela primeira vez na carreira, um grupo que, embora jovem, tem nomes consagrados.

De que aspectos você não abre mão num time?

Num curso, me apelidaram de “Kamicale” por gostar do jogo ofensivo. Achei engraçado. Sou adepto do futebol equilibrado. Mas gosto do domínio do jogo, posse de bola, do jogo apoiado. Para isso, é preciso defender para recuperar a bola rapidamente e manter o domínio. Então, precisa marcar com linha mais alta, o que obriga o goleiro a estar inserido no contexto como mais um jogador.

A seleção tem pouco tempo. Como adaptar Fernando Prass à função?

Ele já faz, em alguns momentos, no Palmeiras. Com treinos e estímulos, pode ser uma válvula de escape. O tempo é reduzido, mas ele é muito inteligente. Para um time propor jogo, tomar a iniciativa, o goleiro precisa participar.

A bola deve ficar no chão?

É um princípio de que gosto. Mas não existe o “não pode”. Existe inversão de jogada, passe longo. É diferente de dar chutão. Os times, hoje, compactam linhas e tiram espaços pelo centro. Isso abre as laterais. E a característica brasileira, neste time, é de extremas habilidosos no “um pra um”. É um ponto a explorar: você atrai o rival para te marcar num lado e inverte a jogada para pegar o extrema em vantagem para o drible do outro lado. Hoje, o Brasil tem laterais e extremas nos melhores clubes do mundo. Somos fortes pelos lados. O modelo de jogo deve privilegiar tal característica.

Qual a hora do passe e do drible?

A individualidade norteia o futebol, mas dentro de um contexto coletivo. Após os resultados ruins que tivemos, é preciso cuidado. O Barcelona foi tomado como modelo pelo jogo construído, sistematizado. Isso é excelente, mas vai até o último terço do campo, perto do gol, onde a individualidade é importante: Neymar, Messi e Suárez. O drible é característica nossa. Temos que otimizar a individualidade dentro de um coletivo.

Aí entra o que você chama de caos? Você não quer fixar posições no ataque para Neymar, Douglas Costa…

Brincaram quando falei do trânsito da Índia. Aquele povo, colocado ali, não bate. Eles se organizam naquele caos. Mas se eu for colocado ali, vou bater. A sensação de caos deve ser do adversário. Nossos jogadores devem entender que, se um jogador está num espaço, não pode haver outro ali, senão, há colisão. Mas quem está ali não é necessariamente sempre a mesma pessoa.

O estilo é tão importante quanto o resultado?

Neste momento, pelo histórico recente, precisamos da essência do jogo bonito, que o mundo gosta de ver, e do resultado. Ter organização e aspectos individuais que saiam do convencional, senão fica muito pragmático. Mas equilibrar isso com resultado é a questão. Ninguém vai a um espetáculo ver algo que não gere prazer. E há o torcedor apaixonado, que não quer saber do processo, mas quer ganhar.

Qual time você mais gostou de ver na vida?

Como gosto de ver jogo ofensivo, com domínio das ações, os times do Guardiola.

Você vem da base. Ela é culpada por fracassos recentes do país?

A discussão é longa. Seria raso definir rapidamente. A base não é culpada de tudo, mas tem culpa. Mudou o processo de produção. Era in natura, pelada de dois contra dois na rua, golzinho de chinelo. Isto dava desenvolvimento motor… Agora, é in vitro, de proveta. A criança vai buscar a escolinha, que não reproduz a rua, mas o ambiente profissional. Perde-se o lastro de desenvolvimento lúdico.

Mas a lista olímpica ainda traz jogadores com a essência do improviso…

Sim, é minha característica. E ainda nascem. O Gabriel Jesus, até 16 anos, jogava futebol de várzea. Tem a alma que o mundo gosta, de expressar alegria.

Por que passamos a formar menos meias armadores do que a Europa?

Andamos privilegiando a força, porque era mercadoria boa para vender. Também deixamos de produzir os pontas. Eles são uma safra recente: Douglas Costa, Neymar, Willian, Jesus… Ficamos muito tempo jogando com duplas de atacantes na frente e com o volante só de marcação, um terceiro zagueiro.

A Olimpíada deve ser uma mini-Copa em casa. Você terá que falar ao país, aparar arestas, ser escudo. Como lidar com algo inédito na carreira?

Boa pergunta. Não sei. Vou ser o que eu sou. Usar coerência, franqueza e honestidade. Não posso prever algo que não tenho experiência de viver e ter respostas prontas. Eu me preparei. Na hora da dificuldade, espero lidar com naturalidade, ser a pessoa que sou.

Você vai liderar jovens com status, dinheiro, vaidades…

Meu receio é mínimo. Trato qualquer ser humano com respeito, seja qual for o status. Tratando todos como seres humanos, o resto fica pequeno. Vou com o coração desta forma.

Que Neymar espera receber?

Um jogador comprometido, com status de grande nome mundial, mas um ser humano. Que vai errar, acertar, que precisa ser elogiado, ouvir parabéns, ou uma indicação do melhor caminho. Ele e todos.

Um Maracanã lotado, disputa de medalha: será possível desfrutar?

Primeiro, vamos focar na primeira fase. Espero desfrutar, sim. Pessoas consagradas não tiveram a oportunidade. Eu vou ter. Mas quando digo desfrutar, é me doar ao máximo ao trabalho.

O Brasil é muito favorito?

O Brasil é sempre favorito. É inerente à história que temos. Mas precisamos trabalhar por um sonho e por recuperar uma imagem que a gente ouve e vê que está um pouco desgastada. A base de Portugal é sempre forte, a Alemanha traz um time que joga junto desde o sub-15, e a Nigéria é forte neste tipo de torneio.