Opinião

Honrar as famílias de origem

Desafios de criar um novo sistema ficam multiplicados em muitas vezes quando nascem os filhos

Honrar as famílias de origem

Mostramos na coluna anterior que os desafios que um casal enfrenta serão maiores ou menores conforme o grau de diferença ou proximidade entre os padrões culturais dos dois sistemas.

Para ilustrar essa situação, o relato a seguir é bem interessante. Trata-se de um casal em que o marido é branco (de etnia italiana e alemã) e a esposa morena (de etnia afro e holandesa). O avô paterno não aceitava a nora devido à cor de sua pele e a recíproca era verdadeira.

A filha mais velha nasceu branca, com os traços do pai e foi acolhida por seu avô como neta predileta. Sua mãe tinha “vergonha” de sair com ela, pois dizia que todos duvidariam que fosse a mãe. A segunda filha nasceu morena, com os traços da mãe. A relação entre a mãe e a menina branca era muito estreita, a ponto de a mãe admitir para esta filha que a sentia mais perto de seu coração do que da filha morena.

Mostra-se aqui uma dinâmica de compensação da mãe para com a filha: por ter nascido branca e ter recebido o acolhimento do sogro que ela rejeitava, transferiu sua rejeição para a filha. Mas o sentimento de culpa a levou mais tarde a compensar a rejeição inicial pela proximidade maior. Esse movimento levou a outra violação: a filha morena se sentiu rejeitada e abandonada pela mãe. Ela tomou as dores da mãe, que se sentia rejeitada pelo sogro por ser morena. A filha tinha para com a mãe a mesma agressividade que sua mãe teve para com seu sogro. Essa filha e seu avô nunca se entenderam, a ponto de ela ter se recusado a ir ao velório dele, mesmo que nora e sogro já tivessem pacificado a própria relação.

Esse relato mostra que os desafios de criar um novo sistema ficam multiplicados em muitas vezes quando nascem os filhos. Neles, nos filhos, os dois sistemas se fundem de fato. Um novo sistema começa verdadeiramente apenas a partir do nascimento do filho. Quando o casal se separa sem filhos não resta um sistema comum para continuar. Mas, quando tem filhos envolvidos (mesmo que não nascidos vivos), ainda que o casal se separe, o novo sistema permanece.

Uma vez que o filho “herda” o sistema familiar do pai e da mãe, não poucas vezes nele podem se manifestar as violações de ordem de um sistema e/ou de outro. Essa é a razão pela qual dissemos acima que a união do casal é mais do que tão somente com o parceiro. A união implica em que cada cônjuge assuma o sistema inteiro do outro. É quase como se cada membro casasse com a família do outro. Enquanto não há filhos, esse casamento com a família permanece limitado ao plano comportamental, de como lidar com o sistema do outro. No entanto, quando nasce o filho, esse casamento com a família do outro se torna literal, pois, nele, no filho, o sistema inteiro de cada família de origem passa a se fazer presente.

Esperamos ter conseguido mostrar o essencial: quando nos unimos em casamento, criamos um sistema novo. No entanto, trazemos para este sistema os dois sistemas de origem. É preciso, ao mesmo tempo, honrar os sistemas de origem e criar o próprio sistema sem adotar nenhum deles como modelo.

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JOSÉ LUIZ AMES E ROSANA MARCELINO são terapeutas sistêmicos e conduzem a Amparar.