Opinião

Coluna Direito da Família

Memórias póstumas de uma pessoa jurídica

Memórias póstumas de uma pessoa jurídica

Se Brás Cubas redigisse essas palavras, não restringiria sua homenagem aos vermes que corroem sua carne, mas estenderia aos corvos que anseiam pela inevitável morte para buscar sua recompensa. Mais certa que a vida é o fim desta, momento em que alguns familiares não só viverão o luto, mas também o conflito pelo patrimônio.

Alicerçada nos costumes primevos, a sucessão hereditária decorre da propriedade, podendo ou não estar atrelada à família. Com o falecimento, o patrimônio não pode ficar sem dono, sendo redirecionado aos herdeiros. A legislação pátria trata de uma ordem de preferência na herança, beneficiando os familiares mais próximos em detrimento dos mais remotos.

Nasce a preocupação da herança com o surgimento da propriedade familiar, nas civilizações em que existia o pater famílias, detentor da propriedade e do fogo sagrado. Com sua morte, o direito à propriedade voltava-se ao primogênito masculino, cuja função seria a continuidade do papel daquele que o precedera. Daí a expressão “sucessão”. Com o avanço teórico-jurídico, tal direito se estendeu a outros indivíduos, garantindo igualdade a todos os irmãos, independentemente de sua origem, e também às mulheres, em razão da isonomia de gênero.

O que há de comum na questão hereditária é seu fundamento: tanto a propriedade, quanto a vontade. Assim, há que se falar em herança na existência de patrimônio, estabelecida a partir da vontade legal ou do chamado “de cujus” (aquele que falece, daquele de quem a sucessão trata), de modo que a herança pode decorrer de inventário, fundamentado nas disposições legais, ou de testamento.

Fato inconteste é que o termo relacionado à transmissão hereditária é a morte. Assim, não é possível falar de herança de pessoa viva, nem contratações sobre o tema (a exceção do chamado “adiantamento de legítima”) por ser considerado “pacto de corvina”, em alusão aos corvos que espreitam a chegada da morte, assim como os herdeiros, na iminência de benefício patrimonial com o falecimento de alguém.

Dessa forma, salvo disposição testamentária, não se discute os termos sucessórios em vida, pois, contrariamente ao que se espera, o legislador prevê a má-fé dos herdeiros, deixando os conflitos familiares para o pós-morte, especialmente no que tange ao pagamento de tributos e as divisões de cotas parte. Mesmo nos casos em que existe testamento, as disposições legais e as definições em momento de inventário podem modificar a última vontade do falecido.

Por isso, tem avançado o chamado “planejamento sucessório”, isto é, definir em vida a partilha de bens, dentro dos parâmetros legais, no intuito de reduzir conflitos e despesas, sem, com isso, realizar contratação sobre a herança, vedada por lei. Uma das formas é o estabelecimento de “holding familiar”, ou seja, a criação de pessoa jurídica familiar em que se integraliza o patrimônio enquanto capital social, tendo o patriarca como administrador e os herdeiros como donatários de cotas parte da empresa, quando do falecimento do administrador. Tal mecanismo direciona-se à redução de custos e de conflitos, no entanto, detém maior complexidade de manutenção, dependendo de assessoria jurídica e contábil.

Mecanismos como a holding denotam as questões sociais da era pós-moderna de necessidade de controle do indivíduo de tudo que lhe cerca, assim como do Estado, aproximando-se da ficção de George Orwell, “1984”, tendo a privacidade e a intimidade escoado das mãos de seus detentores como areia. O controle racional do período moderno perde espaço para o controle mais incisivo, em uma realidade onde impera a ordem do patrimônio e do poder.

Aparentemente, o curso natural das coisas aflige esse homem pós-moderno e a preocupação financeira se impõe, de modo que tornar-se-á o próprio Brás Cubas, realizando os relatórios póstumos e averiguando o cumprimento das metas empresariais. Não há dúvidas que as questões patrimoniais podem e devem ser facilitadas, na medida do possível, sem, contudo, olvidar que a pedra toque da formação e manutenção das relações intersubjetivas é o afeto, este que mantém a vida, mesmo após a morte, na lembrança e na saudade.

Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas