Opinião

Coluna Direito da Família

A perenidade do ser na transgeneracionalidade

 

A perenidade do ser na transgeneracionalidade

 

Dra. Giovanna Back Franco

Professora universitária, advogada e mestre em Ciências Jurídicas

 

“Depois que minha avó Ana Terra se foi, nada mais de importante aconteceu por aqui.” Bibiana, personagem de Érico Veríssimo, relembra com nostalgia de sua avó Ana Terra, sua parteira e maior confidente; aquela que apreciava seu eu secreto e suas particularidades. Mulheres de personalidade marcante ligadas pelo elo da parentalidade e pela afetividade, enquanto fundamentos da formação familiar, direito fundamental que deve ser garantido a qualquer ser humano, na sua realização de um projeto pessoal de felicidade.

Nos primórdios da civilização, a concepção de família era extensa e atrelada à propriedade do chefe familiar: o pater. Assim, além dos ascendentes e descendentes, consideravam-se, também, outros parentes e agregados. Com a Revolução Industrial e o êxodo do campo para a cidade, reduziu-se a família ao núcleo familiar. No entanto, a ascensão do axioma afetividade encontra reflexos no passado remoto sobre a ampliação familiar, sendo direito da personalidade também a ancestralidade, latente do patronímico ou sobrenome, por ser nome de família e identificador social.

Embora nos lares remanesçam, via de regra, os núcleos familiares, a repersonalização do direito de família, desenvolvida nas últimas décadas, assenta a perenidade dos vínculos familiares, estendidos ao infinito quando em linha reta (ascendentes e descendentes).

Nesse sentido, os tribunais têm consolidado a possibilidade de ação para investigação de ancestralidade, enquanto direito personalíssimo atrelado ao estado de filiação, de modo que o neto não precisa reconhecer o pai (por ação de investigação de paternidade) para reconhecer ao avô, podendo, inclusive, fazer jus a direitos de ordem patrimonial e sucessória, caso não tenha vínculo de afetividade com outro pai.

Além disso, estende-se aos avós o direito de convivência, assegurado enquanto fundamental e crucial para atender ao melhor interesse da criança e do adolescente, visto que a formação adequada da personalidade do indivíduo se dá com as relações intersubjetivas e com o reconhecimento social e familiar: o olhar do outro nos constitui. A falta de reconhecimento, entendido como valorização pelo outro, oprime, frustra e traz sofrimento, como a alienação parental. Destarte, garante-se o direito de convivência (ou de visitas) aos avós, além de qualquer pessoa que lhe tenha afeto.

Em regra, os filhos menores são de responsabilidade dos pais ou genitores, em decorrência do chamado poder familiar. No entanto, havendo suspensão ou perda deste pela conduta indevida pelos genitores, como abandono, abuso, maus-tratos, a guarda (parcela do poder familiar) será atribuída, preferencialmente, aos avós, entendidos como os mais aptos, após os pais, ao devido cuidado com os menores. Essa guarda, porém, é de caráter precário e não traz efeitos patrimoniais ou sucessórios, além de não poder ser convertida em adoção, visto que é vedada adoção entre ascendentes. Ademais, remonta à sacralização dos vínculos biológicos, nem sempre correspondendo com o melhor interesse da criança e do adolescente.

Assentada na solidariedade familiar, ainda é possível o pleito de débito alimentar frente aos avós. Este, porém, será subsidiário e complementar à dívida paterna, pois esta se fundamenta no poder familiar, direito primevo derivado da relação de filiação. Os avós, comprovada a necessidade alimentar e a possibilidade de prestação, pode ser convocado a prestar alimentos, de forma proporcional, para garantir o direito mais fundamental de todos: a vida.

Aderida à terra, pois do pó viemos e a ele voltaremos, a vida está na transgeneracionalidade (na relação entre gerações), lastreada no afeto, no reconhecimento e na responsabilidade. E enquanto alguém trouxer à memória um sorriso, um cheiro, um jeito do outro, ali estará a perenidade do seu eu.