Opinião

Coluna AMC: Como o Destino atrapalha uma vingança – Parte II

Coluna AMC: Como o Destino atrapalha uma vingança – Parte II

Coluna AMC: Como o Destino atrapalha uma vingança – Parte II

 

 

Há cada quinze dias, Fenelon saia para operar em Ribeirão, ficava fora o dia todo. O moço aparecia. Os namorados pensam que o mundo é cego, disse Mário Pimentão, motorista da ambulância, tido e havido como pessoa que sabia das coisas que ninguém percebia. O comentário ferino, foi dito para Dona Valderez exatamente no momento em que o moço, muito bem arrumado, saía da casa do Dr. Fenelon, despedindo-se da Dona Iolanda, com toda cerimônia.

Aquele pedaço de papel deixara Fenelon com um olhar distante e o coração apertado. Naquele dia, operou mecanicamente. Não foi capaz de falar nada a não ser o necessário. Tinha um semblante diferente. Estava sem alma. Mesmo assim, no hospital, quase ninguém percebeu a mudança. Somente Dona Valderez sabia o que estava se passando. Ela mesma escrevera o bilhete e colocara sobre sua mesa. ” Quando o senhor viaja, o urso entra na sua casa”. Os pensamentos do Dr. Fenelon vagavam agora por um mundo sombrio.   Ao chegar em casa queixou-se de uma forte dor de cabeça e após tomar uns comprimidos, caiu na cama e dormiu pesadamente. Iolanda assim pensou; ainda bem que dormiu logo. Amanhã cedo ele vai passar o dia todo operando em Ribeirão e só voltará, depois das dez da noite.

Na tarde do dia seguinte, chovia.  O tempo fechado espantou mais cedo a luz do dia. A chuva também afugentava as pessoas das ruas, sempre emporcalhadas por uma mistura de lama e cocô de cavalos. Iolanda e o moço amavam-se ruidosamente, vivendo mais umas horas naquele universo distante, somente permitido aos viajores apaixonados.

Não pressentiram nada, quando o moço arregalou os olhos. O corpo tremia, não sentia mais o pênis. O grito de Iolanda ao ver o marido com um revólver numa mão e uma espingarda na outra teve uma sonoridade estranha. Fora, fora, gritava Fenelon enfurecido. Fora da minha casa! Apontando-lhes as armas, encostando o cano da espingarda em suas costas e nádegas.

Aos gritos, vociferando maldições expulsou-os do quarto em direção à porta da frente. A chuva caia fina, quase uma neblina. Nem o anjo Gabriel, cumprindo a determinação do Senhor teria sido tão cruel. Os primeiros passantes, a princípio, não entendiam o que estavam vendo. Dr. Fenelon conclamava, como um arauto ensandecido, a que toda Palmares participasse daquele drama. Iolanda e o moço estavam completamente nus. Ela muito branca, pés delicados, mal podia equilibrar-se na rua escorregadia e emporcalhada, pois tentava a todo custo esconder sua nudez e ainda tinha que caminhar tocada pelo cano da espingarda. O moço simplesmente tremia, não dizia nada, curvado, sem ter onde colocar as mãos, despido, constrangido de participar daquele desfile surrealista.

Ouviu-se um disparo do revólver. O tiro fez muita gente acudir à rua. Iolanda sentia a morte rondando. Aliás, estava tão perplexa que nem conseguia organizar seus pensamentos e desejar a morte. O médico atirou novamente.  Povo de Palmares, gritava a plenos pulmões, veja como um homem de bem lava a sua honra. Outro tiro para cima e os dois amantes, encostando-se um no outro, tentando como podiam cobrir o ventre, caminhavam com dificuldade sobre as pedras molhadas como dois condenados em direção ao patíbulo. Os gritos do Dr. Fenelon atraiam mais gente à medida em o trio caminhava pelo meio da rua em direção à Praça do Jacaré, ladeira acima. O logradouro tinha um grande tanque redondo onde três ou quatro jacarés capturados no rio Ipojuca, viviam preguiçosamente. A igrejinha ficava no alto e a escadaria terminava num pequeno plano que fazia, naquela ocasião, as vezes de um palco digno da imensidão daquela tragédia.

O moço e Iolanda, pálidos, tremiam de frio e de medo, encostados na porta da igreja tendo duas armas apontadas para si. Fenelon mais à frente, como um mestre de cerimônias, anunciava aos berros à pequena multidão as razões pelas quais mataria os dois na porta da igreja. Mais um tiro para cima, a multidão tremeu, Iolanda e o moço cobertos por toda vergonha do mundo, não ousavam encarar ninguém.

Fenelon bradava. Venham todos, venham ver como um homem de bem e honrado faz Justiça a esses que difamaram seu lar! Romildo, dono do hotel tentou falar alguma coisa, mas recebeu de volta o olhar furioso do médico. Eu tenho o direito de lavar a minha honra com sangue, gritou Fenelon.  Arclébio, do posto de gasolina quis interferir, mas a mulher o segurou, mandando-o calar-se. Para ela, qualquer interferência que fizesse findar aquele drama seria desastrosa para suas pretensões mexeriqueiras, assim, era melhor que aquele episódio tivesse mesmo um trágico final.

Algumas mulheres choravam temendo pelo desfecho daquela tragédia. Foi quando, Dona Nulita, mulher do juiz, segurando um lençol aproximou-se resoluta e gritou. Fenelon, você não vai estragar sua vida, você não vai atirar em ninguém, primeiro, precisa me matar e isso você não vai fazer. Rapidamente postou-se entre o médico e a mulher despida, abraçando-a e cobrindo-a com o lençol. No mesmo instante, o cabo Adailton segurou Fenelon, ainda atônito com a perda de controle da situação e gritou para o moço. Se dana daqui homem, desaparece. Como por encanto, o moço sumiu pela lateral da igreja enquanto Dona Nulita, pelo outro lado, encurvada sobre Iolanda, a conduzia para sua casa, deixando o Dr. Fenelon, ainda seguro pelo cabo Adailton, gritando as últimas ameaças aos dois pecadores que difamaram o seu lar e destroçaram sua vida.

Durante mais de dez anos, Palmares conheceu muitas versões dessa história. O certo é que o médico largou a mulher e mudou-se da cidade.

Sábado, 17 de Abril de 1973, quinze anos depois. Dez horas da manhã uma Rural Willys, cheia de malas no bagageiro com um homem e uma mulher, faz uma volta na praça e sobe a rampa de entrada do Hospital Regional de Palmares.

Doutor Fenelon, Dona Iolanda!!!

Mário Pimentão, reconhecera o casal.

 

Autor – Dr. Lucio Araripe – médico psiquiatra. CRM PR 13246