RIO ? A música do alemão Richard Wagner (1813-1883) foi apenas o ponto de partida. Em parceria com as bailarinas Josefina Gorostiza, Carla Rimola, Carla Di Grazia e Ayelen Clavin, o diretor e coreógrafo argentino Pablo Rotemberg, expoente da dança contemporânea, mergulhou no universo feminino para explorar os estereótipos e preconceitos aos quais as mulheres estão sujeitas. O resultado desse encontro é o espetáculo ?La Wagner?, em cartaz até amanhã no CCBB, como parte da programação que encerra o festival Cena Brasil Internacional.
Em tempos de discussões acaloradas sobre desigualdade de gênero, assédio e abuso sexual, O GLOBO convidou as quatro bailarinas-criadoras a pensar o lugar do corpo feminino na sociedade e na cultura.
O que as levou a construir ?La Wagner?? O debate sobre gênero alcançou as artes na Argentina?
Josefina Gorostiza: Sobre o ?La Wagner?, em particular, o tema da violência de gênero contra as mulheres não foi trabalhado no processo de construção da obra. O que não significa que houve ingenuidade no trabalho com relação à violência de gênero como temática, pelo contrário; nossa decisão foi trabalhar certos limites do corpo, sem sublinhar nada em específico. Aqui temos algo interessante: não trabalhamos diretamente com o significado, no sentido de aquilo que se quer contar, mas na forma, ou seja, no significante. Isso permite que o espectador tenha uma infinitude de leituras possíveis, que vão enriquecendo o espetáculo ao longo das nossas temporadas.
Como a opressão e a violência contra as mulheres é evidenciada e, ao mesmo tempo, enfrentada e superada no espetáculo?
Carla Rimola: O corpo se constitui como um signo muito forte. Ele se faz presente e emerge em um espaço despojado como a principal materialidade cênica. Sobre esse corpo, em todo o desenvolvimento da obra, sucedem-se diferentes ações. Ele nunca sai de cena, movendo-se de maneiras diferentes, encarnando paradigmas distintos, persistindo e se transformando. Na obra, fazemos perguntas a esse corpo: ele pode ser como o dos homens? Como se movem os corpos masculinos e femininos? O que é cultural? Quais desejos e atitudes corporais estão marcadas pelo consumo? Até onde estamos falando sobre modelos construídos? É possível conhecer mais sobre todos os corpos a partir do corpo da mulher? A tentativa de fazer essas perguntas, ao mesmo tempo em que evidenciamos esses mecanismos, pode empoderar o corpo para conseguir desarticulá-los e desativá-los. Apagando-os por um momento, podemos especular sobre a essência e a potência que constituem o corpo.
Como foi feita a opção pela nudez em cena? Vocês se sentem expostas de alguma forma?
Carla Di Grazia: A princípio, a nudez não é um dos principais eixos do trabalho de Pablo Rotemberg. Certos signos ou denúncias do corpo feminino foram aparecendo durante a construção da obra, mas nunca foram os temas centrais do trabalho. Pensamos no corpo como matéria que se degenera, apodrece, se lastima, se desgasta, entra em colapso e resiste. A proposta cinética que o Pablo nos oferece é evidenciar tudo isso que se passa no corpo, em vez de ocultar. Para nós, a sensação de exposição não está relacionada à nudez; acreditamos que nossa pele é uma armadura, uma outra vestimenta. Nosso maior desafio é entrar no palco a cada dia e realizar nossa tarefa com perfeição, dando tudo de nós à obra.
O corpo feminino é muitas vezes usado como plataforma publicitária, vendendo carros, cerveja e sonhos masculinos. Mas também sonhos femininos, caso em que o próprio corpo é transformado em objeto de desejo e produto vendável. Como vocês veem essa questão?
Ayelen Clavin: No âmbito da publicidade, os corpos são coisificados, e certamente o corpo da mulher adquire sua dimensão de corpo objeto, que satisfaz o comprador ou consumidor médio: homem, branco, ocidental, respondendo a um modelo heteronormativo violento. Mas talvez a maior violência seja a aceitação desse uso dos corpos femininos por parte de toda a sociedade, com exceção de poucas minorias que lutam para chamar a atenção sobre o assunto e convidam a uma reflexão.
Na verdade, esse tema não veio à tona na construção de ?La Wagner?. Mas há um vínculo no modo como refletimos sobre os lugares ocupados pelos corpos na dança ao longo da história. Agora, parece um lugar-comum pensar na democracia dos corpos e em seus movimentos, mas, durante mais de dois séculos, na dança, corpos masculinos e femininos não faziam as mesmas coisas. Dificilmente poderíamos imaginar uma camponesa levantando o peso de um camponês, só o contrário. No espetáculo, a possível virilidade ou feminilidade dos corpos é circulante. A fortaleza/fraqueza e atividade/passividade aparecem nas intérpretes de maneira móvel, performática, instável, ambígua e real.