RIO ? Das muitas definições da palavra ?amor? que existem por aí, essa certamente é uma das mais canalhas: ?Insanidade temporária curada pelo casamento ou pela remoção do paciente das influências sob as quais ele contraiu a doença. Essa doença, como a cárie e muitas outras, só se encontra entre raças civilizadas que vivem em condições artificiais; nações bárbaras que respiram ar puro e comem alimentos simples gozam de imunidade?. Links humor
Em 1881, depois de viver uma vida peculiar ? certamente com muitos amores comparados a cáries ?, o jornalista americano Ambrose Bierce resolveu escrever em forma de verbetes algumas conclusões às quais havia chegado àquela altura. Um ano, por exemplo, não era só um ano, mas ?um período de 365 decepções?. Um canalha, ?um homem com as qualidades exibidas como numa caixa de frutas no mercado, as boas para cima?. Uma guilhotina, anotou ele, ?uma máquina que faz um francês encolher os ombros por um bom motivo?. Bierce publicou os aforismos no jornal em que trabalhava, enriquecendo cada entrada com trechos de poesias ilustrativas. E ao final, por volta de 1911, tendo percorrido verbetes de A a Z, lançou o livro ?Dicionário do diabo?, hoje um clássico da literatura americana de humor ? que só agora tem sua versão completa publicada no Brasil, incluindo as poesias, em edição de luxo da Carambaia.
Mas quem era o escritor de língua ferina, para quem a justiça era ?mera mercadoria adulterada vendida pelo Estado ao cidadão como recompensa por sua fidelidade e impostos pagos?, e o homem, um ?animal perdido no êxtase da contemplação daquilo que pensa ser, a ponto de negligenciar aquilo que devia ser??
Ambrose Bierce foi um sujeito nascido em berço excêntrico. Filho de um pai fanático religioso, que batizou todos os dez filhos com a letra ?A?, Bierce era o caçula de dez: um dos irmãos fugiu com o circo, uma das irmãs virou missionária na África e foi devorada por canibais. Seu primeiro emprego foi como cartunista num jornal de Indiana, mas logo em seguida, aos 18 anos, acatou o chamado público de Abraham Lincoln para lutar na Guerra Civil Americana. Bravio e corajoso, em apenas três meses o soldado já assumiria como primeiro-tenente.
É como se ele tivesse escrito o roteiro da própria vida: bonitão, sobreviveu a um tiro na cabeça, embrenhou-se pelo Velho Oeste, foi gerente de uma mina de ouro, seu filho mais velho morreu assassinado e o mais novo não resistiu ao alcoolismo. A certa altura, largou tudo para voltar a ser jornalista e, trabalhando com William Randolph Hearst, cuja vida inspirou Orson Welles a compor ?Cidadão Kane?, Bierce escreveu colunas memoráveis (sobre sua mesa, jazia um crânio humano, que dizia ser de um amigo), e seu sarcasmo influenciou gerações de repórteres.
É dessa época a publicação do ?Dicionário do diabo?, que começou a escrever pouco antes de ter sua pena afiada para as histórias de horror, gênero pelo qual ficou mais conhecido. No Brasil, há uma coletânea de seus melhores contos escolhidos e traduzidos pela escritora Heloisa Seixas: ?Visões da noite: histórias de terror sarcástico? (publicado pela Record em 1999). Na introdução do livro, ela observa: ?Sua descrença da humanidade, presente em tudo o que fez, se reflete no alto teor de ironia que pressentimos nas entrelinhas. Essa ironia chega às vezes a interferir no próprio clima de terror que Bierce, como autor, está tentando criar no leitor. Numa espécie de autossabotagem literária, ele interrompe uma narrativa arrepiante para fazer uma brincadeira. E é como se, com uma expressão diabólica, nos dissesse, a nós, leitores: ?Vamos ver se, mesmo depois dessa piada, você continua acreditando??.
REFERÊNCIA DE ‘TRUE DETECTIVE’
Editora do ?Dicionário…?, Graziella Beting explica por que decidiu manter o clima datado do texto, não incluindo notas de rodapé para contextualizar.
? Quisemos manter o texto original porque o humor de cada verbete é universal, mesmo assumindo que alguns textos são até misóginos, relacionando a mulher a atividades domésticas ou ao casamento ? observa Graziella, lembrando que há verbetes bastante provocativos para a época (como ?branco?, que Bierce define como ?preto?). ? Nos Estados Unidos, seus aforismos são muito citados, é uma obra referencial de humor que segue muito viva. Hoje, Bierce seria ótimo de Twitter.
Assim como surgiu, Ambrose Bierce desapareceu: até hoje ninguém sabe exatamente como morreu. Há especulações de que tenha sido fuzilado pelo Exército mexicano de Pancho Villa por volta de 1913, aos 71 anos, quando cobria o conflito para uma reportagem, mas seus restos jamais foram encontrados. Sobrou a sua obra, que volta e meia reaparece como referência literária em histórias de suspense e terror ? a última foi na série de TV ?True Detective? (Carcosa, um dos lugares imaginários do enredo, surge pela primeira vez no seu conto ?Um habitante de Carcosa?). Parece ser este um dos momentos do autor. Depois do ?Dicionário…?, Graziella deixa escapar:
? Dávamos gargalhadas enquanto pesquisávamos seus textos. Ficamos com vontade de editar outros dele, como seus livros-reportagem, que soam completamente fantásticos.