RIO – O bolo aparece no quinto capítulo, narrado por Rick, um dos muitos personagens de ?Você já teve uma família??, o primeiro livro de ficção do agente literário e memorialista Bill Clegg, convidado da Flip, que acontece entre 29 de junho e 3 de julho. O quitute, de coco com laranjas frescas, tem receita brasileira. É, também, o bolo de um casamento que jamais vai acontecer por conta da tragédia que dá razão de ser ao livro de Clegg, finalista de dois dos mais prestigiados prêmios de literatura em língua inglesa ? o Man Booker, britânico, e o National Book, americano ?, agora traduzido para o português por Rubens Figueiredo e publicado pela Companhia das Letras.
? Esse bolo foi inspirado no do meu casamento. Meu marido e eu experimentávamos várias opções até que perguntei para o dono do serviço de catering se podia comer uma fatia daquele que estava no álbum de fotos do casamento dele. Ele riu e disse que aquele era um doce caseiro, feito pela mãe, receita antiga da família mineira, para consumo interno. Ela veio do Queens, passou o fim de semana conosco, e o bolo foi o ponto alto culinário da nossa celebração. Nunca mais me esqueci do sabor ? diz Clegg.
Há muito do memorialista de sucesso ? são da lavra de Clegg ?Retrato de um viciado quando jovem? (2011) e ?Noventa dias? (2013), disponíveis no Brasil pela mesma Companhia das Letras ? no estudo ficcional de uma família formada por seres imperfeitos, repletos de defeitos e falhas morais, às voltas com as maravilhas e consequências do ato de perdoar, o outro e a si mesmo. O autor se debruça sobre vizinhos, forasteiros de ocasião, amigos de escola e parentes de sangue que veem a vida passar em um vilarejo da costa americana.
Wells é uma localidade imaginária baseada tanto nas comunidades extremamente desiguais de Connecticut, estado com significativas comunidades de imigrantes oriundos de Portugal e do Brasil, quanto no distrito de Duchess, no estado de Nova York, que conta com algumas das maiores fortunas do país vivendo lado a lado com moradores se equilibrando para se manter acima da linha de pobreza americana. É lá que vivem os personagens marcados por um incêndio aparentemente acidental, às vésperas de um casamento já agourado, descobre-se aos poucos, por línguas e percepções dos habitantes da cidade.
Cada capítulo curto leva o nome de um dos protagonistas, e o leitor vai se pegar voltando páginas a fim de lembrar quem exatamente são Rick, Lydia, Silas, Edith, Rebecca, George, Dale, Kelly, Lully e Cissy e como eles tocaram a vida de June Reid, a voz central do livro, uma mulher de meia-idade que tenta escapar de seus mortos se refugiando em um motel incolor à beira do Pacífico, em Moclips, quase na fronteira com o Canadá, do outro lado do país:
? Meus livros de memórias eram tentativas de descobrir o porquê de eu ter vivido a agonia do vício, de cocaína e crack, de forma tão intensa, quando tão jovem. Por isso voltei a Sharon, em Connecticut, cidade que deixei aos 17, após o divórcio de meus pais, quando era, essencialmente, um adolescente infeliz. Comecei a escrever sobre o que me lembrava da época, das pessoas, das histórias. E saiu um ?ela vai partir?. Ali nascia ?Você já teve uma família??.
Foram sete anos de idas e vindas, como agente de Irvine Welsh (?Trainspotting?) e de Benjamin Moser (?o que ele fez com a obra da Clarice Lispector, para os leitores de língua inglesa, me dá uma alegria imensa??), entre muitos outros, pela primeira vez se vendo em papel reverso: era ele quem teria de encontrar um agente e ver seu livro vendido para editoras. O resultado foi um sucesso de público e crítica de proporções inesperadas para o experiente agente, celebrado como uma das mais importantes ?novas? vozes da literatura contemporânea americana. E um dos personagens menores do livro é o ponto de partida para seu segundo romance, ainda sem título, mas com mais de uma centena de páginas escritas e revisadas:
? A estrutura de ?Você já teve uma família?? foi influenciada por William Faulkner (1897-1962), especialmente por eu dar vozes a cada um dos personagens, capítulo a capítulo, e por serem todos de um mesmo lugar. Queria um lugar de 1.500 pessoas em que um dos homens mais ricos dos EUA pudesse encontrar na rua com um trabalhador braçal, morador da vizinhança. Também procurei seguir o único conselho que sempre dei no papel de agente: ?escreva sempre, e apenas, o necessário?.
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
O agente que quase perdeu carreira e prumo por conta da dependência química ? ?as memórias foram consequência de minha sobriedade, não o oposto? ? comanda um escritório em endereço nobre, na Quinta Avenida, e segue confiante no sucesso do livro de papel em oposição à febre dos e-books. E divide com os leitores os dois livros de autores contemporâneos norte-americanos mais interessantes que passaram por suas mãos recentemente: ?Eileen?, de Ottessa Moshfegh, escritora de Boston com ascendência croata e iraniana, e ?The girls?, de Emma Cline, que será lançado no Brasil pela Intrínseca.
?Você já teve uma família??
autor: Bill Clegg.
tradutor: Rubens Figueiredo.
editora: Companhia das Letras.
páginas: 264.
Preço: R$ 44,90