RIO – Saudosos, moradores da Colônia Juliano Moreira lembram do tempo, não tão distante, em que o relinchar dos cavalos era o ruído mais alto que podiam escutar e de quando podiam dormir com as portas destrancadas, tamanha a tranquilidade na região, cujo crescimento demográfico se deu a partir de núcleos familiares formados por funcionários e ex-funcionários do antigo hospital psiquiátrico. Recentemente, porém, com as obras do PAC e, principalmente, do corredor expresso Transolímpico, que passa por dentro do bairro, o panorama se transformou. Entre transtornos, demolições e preocupação com aumento da insegurança de um lado, e promessas de urbanização e progresso do outro, a população e as instituições locais se preparam para absorver um impacto já visível e relevante.
Vizinha das obras do Transolímpico, Sueli Romão diz ter pensado inicialmente que o projeto a beneficiaria, mas, hoje, já não tem tanta certeza disso. Atualmente, ela precisa andar por dentro de uma estreita canaleta de água pluvial até chegar à sua casa, no conjunto residencial Egas Moniz. O caminho improvisado inclui escoamento de esgoto a céu aberto. A sujeira antes passava por baixo da Ladeira Bela Vista, cortada ao meio pelo corredor expresso.
? Eles quebraram a rua e restringiram nosso acesso. Ou eu faço esse trajeto ou passo por dentro da comunidade Entre Rios. Sendo que, para pegar o ônibus, vir pela canaleta é muito mais rápido ? diz Sueli, moradora da Juliano Moreira há 26 anos e que há quatro foi reassentada no conjunto construído pelo programa Morar Carioca. ? Passaram por cima da gente como um trator.
Assim como a Ladeira Bela Vista, a Rua da Creche sofre as consequências de uma construção de grande magnitude. Antes atendidos pela linha de ônibus 732 (hoje substituída pela 832, alimentadora do BRT), hoje seus moradores precisam andar até a Rua Adalto Botelho, uma transversal, para pegar transporte público. Isso porque veículos com mais de 2,20m de altura não podem mais passar pela rua desde a construção do viaduto do Transolímpico.
Moradores das casas 10, 12 e 14 da Rua da Creche, coladas ao futuro corredor expresso, reclamam do barulho das obras e dizem que a iluminação e o asfaltamento foram desfeitos. Para piorar, a rampa de acesso de carro às garagens das casas foi demolida.
? Vendi meu carro, mas não consegui entregá-lo porque não dá mais para tirá-lo da garagem. Ele ficou preso ? lamenta Valmir Gomes, morador da colônia há 37 anos. ? Isso aqui era um sossego. Agora está um caos. Imagina quando o BRT começar a funcionar.
Em janeiro passado, Manoel Teixeira, genro de Maria Fernandes, moradora da casa 12, protocolou reclamações pelo canal 1746 e conseguiu contato com o fiscal da obra. Ao contar o drama daqueles moradores, em especial o ocorrido com seu falecido sogro, que no ano passado teve que ser carregado no colo até uma ambulância, já que o veículo não podia mais chegar até a porta da residência, recebeu a promessa de que a rampa de acesso seria refeita. Desde então, porém, não recebeu mais notícias:
? Eu disse que, segundo orientação do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), a altura mínima de uma nova via expressa deveria ser de quatro metros. O fiscal pediu mil desculpas, mas nos últimos meses parou de me responder. Pensamos em entrar na Justiça.
Para Sueli, faltou diálogo com os moradores.
? Não houve uma reunião geral. No Egas Moniz, ninguém foi procurado. Por que não fizeram um plano de urbanização a partir do núcleo histórico, respeitando as comunidades do entorno?
Próximo ao núcleo histórico, os transtornos não são tão evidentes. O aposentado Roberto de Oliveira, conformado, queixa-se somente do fim da tranquilidade.
? A colônia acabou. Hoje já vivemos num bairro gigante ? diz o ex-segurança de 74 anos, nascido e criado no local.
Sua mulher, Cleide de Oliveira, é mais crítica:
? Desmataram, não conservaram os prédios tombados e hoje tem criminalidade aqui.
A Secretaria municipal de Obras informa que a urbanização junto às casas 10, 12 e 14 da Rua da Creche começará em julho, sustenta que houve reunião com moradores antes das obras e que ?os casos de acesso a garagens foram tratados individualmente?. Já sobre a Ladeira Bela Vista, diz que melhorias na rede de esgoto serão concluídas ainda esta semana.
Sem diálogo com o poder público
A Colônia Juliano Moreira tem sete milhões de metros quadrados, o tamanho de Copacabana, e se notabilizou por abrigar o hospital psiquiátrico, gerido pela União. Em 2000, já com as reformas psiquiátricas em vigor, foi municipalizada. No local hoje há unidades de saúde, inclusive com pacientes antigos que continuam sendo tratados, além de uma sede da Fiocruz e o Museu Bispo do Rosário. Em 2009 foram anunciadas as obras do PAC, com a promessa de melhoria de serviços públicos e construção de habitações sociais. A transformação da área chegará ao seu ápice, entretanto, com a finalização do Transolímpico.
Para acompanhar tantas mudanças, em novembro de 2015 foi criada a gerência da Colônia Juliano Moreira, cargo hoje ocupado por Marcelo Alonso, de 50 anos, nascido e criado ali. Ironicamente, Alonso, cuja função é servir de interlocutor entre moradores e prefeitura, reclama da falta de diálogo com o poder público.
? A mudança está sendo muito brusca. As obras vieram para melhorar o bairro, mas houve uma grande piora. Nos casos da Rua da Creche e da Ladeira Bela Vista, por exemplo, faltou informação prévia. Eles entraram de qualquer jeito, sem respeitar os moradores; eu avisei que daria problema. Faltou bom senso e sensibilidade em muitas situações ? afirma Alonso, referindo-se também às demolições realizadas na colônia.
Segundo ele, desde o início do ano, 40 imóveis foram postos abaixo, medida amparada por um decreto municipal de abril de 2011 que não permitia novas construções em Áreas de Especial Interesse Social. Procurada, a Secretaria de Ordem Pública afirmou que houve apenas sete demolições na região em 2016:
? Não discuto a lei, porque ela declarava as construções ilegais. Mas reclamo da truculência. O caso da colônia é muito específico, ela se expandiu a partir de núcleos familiares. Tivemos casas demolidas sem notificação. Eu quase fui para a delegacia por reclamar da forma como os agentes derrubavam as portas.
Alonso afirma que, depois de representantes dos moradores terem comparecido a uma reunião na prefeitura, há duas semanas, Eduardo Paes teria ordenado a suspensão das demolições na Colônia Juliano Moreira. A prefeitura, no entanto, nega a informação.
A chegada de conjuntos do Minha Casa Minha Vida também contribuiu para mudar a realidade da colônia. Desde 2009, já foram contratados mais de 50 mil imóveis, e pelo menos cinco mil, entregues. Com isso, a população, de 15.365 moradores segundo o último Censo (número contestado por Marcelo Alonso, que acredita que são mais de 50 mil moradores, incluindo-se as comunidades do entorno), torna-se cada vez maior e mais diversificada.
? O impacto é muito grande. Antes só havia uma entrada e uma saída aqui; hoje são várias ? observa Alonso.
O Transolímpico afetou não só moradores, mas instituições locais. O Museu Bispo do Rosário, que guarda o acervo, tombado, do paciente mais famoso do antigo hospital psiquiátrico, é um deles.
? É uma construção muito agressiva; o corredor passa do lado do museu. Foi uma obra imposta. Agora estamos elaborando ações para absorver esse impacto ? diz a diretora do museu, Raquel Fernandes.
O corredor expresso trouxe mudanças concretas no entorno do museu. Raquel destaca a construção de uma passagem de pedestres ao lado da sede, por baixo do novo viaduto. No espaço estreito mal cabem duas pessoas andando juntas, e falta iluminação.
? É muito escuro. Fica perigoso à noite, ninguém quer andar por ali. Reclamamos muito com a Secretaria de Obras, mas não mudaram o projeto ? diz a diretora do museu, contando que moradores grafitaram o local, para torná-lo menos inóspito.
A Secretaria municipal de Obras, questionada, afirma que a iluminação será melhorada no local até o fim da semana.
Em meio a tantos investimentos ao redor, como obras de saneamento, pavimentação e iluminação pública, o núcleo histórico, onde há 23 edificações tombadas pelo Iphan ou pelo Inepac, continua deteriorado. Iracema Polidoro, presidente da Associação de Saúde Mental Juliano Moreira, que funciona na sede da colônia, lamenta a situação.
? Estão transformando a área, mas não revitalizam o centro histórico ? destaca Iracema, que também reclama de aumento de criminalidade no local, ao que o 18º Batalhão (Jacarepaguá), procurado, respondeu dizendo que realiza rondas frequentes na região.
Em 2011, a Fiocruz elaborou um Plano de Requalificação da Colônia Juliano Moreira. O projeto revitalizaria-a a partir do centro histórico. A ideia não foi à frente, por falta de financiamento. Coautora do livro ?Asilo e a cidade: histórias da Colônia Juliano Moreira?, Ana Teresa Venâncio, que também participou do projeto da Fiocruz, lamenta o descuido com a memória do local.
? Eu pessoalmente acho que a entrada do corredor é muito agressiva, porque passa no meio do núcleo histórico ? opina a autora.
Apesar da apreensão de antigos residentes, o gerente Alonso diz que é preciso aceitar a nova Colônia Juliano Moreira:
? As pessoas precisam entender que aquela colônia antiga não existe mais. Mas muita gente resiste a aceitar isso.