O conceito de entidade familiar ou, simplesmente, de família relaciona-se tradicionalmente ao casamento, à heteroafetividade e à monogamia, inclusive como construtos de subjetividade dos seus membros. Não à toa, nessa ótica, a mulher se perfaz pelo casamento, quando o celebrante os declara “marido e mulher” e perde sua característica com a dissolução da sociedade conjugal, quando se torna ex-mulher. A linguagem, como elemento discursivo de formação da subjetividade, pode ampliar ou restringir realidades, como no caso de não haver o feminino de marido.
Fidelidade é a palavra de ordem na família tradicional monogâmica de modelo romano-canônico, embora o rigor do dever recaia de forma desigual sobre os ombros femininos. O homem detém privilégios nas relações jurídicas privadas, gosta tanto da família que por vezes decide que uma só é um muito pouco.
Porém, as andorinhas que nessa terra gracejam parecem estar melhor quando cozidas, como insinuou Escobar em Dom Casmurro de Machado de Assis, ou seja, o símbolo de fidelidade é posto à mesa, em uma sociedade que demonstra tendências moralizantes fundamentalistas, e parece não combinar muito bem com o livre voo, especialmente da mulher.
Diante da pluralidade e da efemeridade das relações, relações marginais recebem reconhecimento social, embora não se coadunem com os discursos moralizantes dos legisladores e não dê as caras na Casa do Povo. A proposta de alteração do Código Civil visa à ampliação do conceito de família, para abranger inclusive os pets, com as chamadas “famílias multiespécie”, porém o reconhecimento encontra limites.
Ainda que haja ânimo de constituição familiar e boa-fé, não se reconhece a família simultânea, ainda denominada de concubinato (com os ares pejorativos do homem universal enquanto menor unidade econômica para as construções teóricas sobre a humanidade, que não tem obrigação do cuidado). Não se pode sequer haver efeitos previdenciários, em dissonância da realidade social, violando direitos majoritariamente femininos.
Os julgamentos não jurídicos, mas da ordem da moral, de legisladores machistas e fundamentalistas premiam a irresponsabilidade masculina, quando este viola o dever jurídico da monogamia, pois a prejudicada é a mulher que pode ter o seu trabalho e acúmulo patrimonial invisibilizado. Pode haver a partilha de bens comuns da sociedade de fato (gambiarra jurídica para tentar dar direitos à mulher de boa-fé), conforme entendimento pacificado do Supremo Tribunal Federal, porém não há impedimento de que o juiz enfrente o ônus argumentativo e justifique o benefício masculino em detrimento de violação de direitos fundamentais à mulher, ainda denominada de concubina.
A monogamia familiar ainda pode ser um valor social relevante, porém não pode ser princípio jurídico estruturante do direito de família, na medida em que a entidade familiar (plural) deve ser instrumento de afeto, ou seja, daquilo que afeta, daquilo que toca à personalidade de cada membro.
Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito