A soja é o principal produto que faz o Brasil ser um grande “império” do agronegócio. Maior produtor e exportador do mundo, o grão brasileiro espalha empregos e riquezas por meio da agregação de valor em cadeias produtivas de proteína animal, biocombustíveis e também como uma valiosa commodity. Somente em 2018, o produto gerou 40,6 bilhões de dólares em divisas em vendas ao exterior.
Chegar a esse patamar de destaque global em produção e exportação, no entanto, exigiu um esforço digno de uma epopeia. A missão para adaptar uma planta vinda da Ásia, bastante exigente em termos de temperatura, solo, exposição solar, umidade e uma série de outras variáveis, exigiu, sobretudo, persistência. Repetição até a perfeição por pesquisadores, produtores rurais, extensionistas, lideranças políticas e da iniciativa privada. Todos empenhados com um propósito comum, com a ciência como linha condutora. E nesse cenário, um dos principais terrenos de avanços foi o Paraná.
Uma das cenas mais emblemáticas dessa saga da soja no Brasil ocorreu no fim dos anos 1960. Mais exatamente em 1968, Franke Dijkstra, então com 27 anos, apostava, junto com a família, na produção em Carambeí, nos Campos Gerais. Somente por isso já podia ser considerado um agricultor ousado, afinal, na época, o país não chegava a exportar 1 milhão de toneladas do produto. A produção, já estava em curso havia quase 10 anos, registrava bom desenvolvimento. O que não estava inspirando confiança era o solo. A chuva estava, literalmente, levando embora o patrimônio mais valioso para quem vive da agricultura: a terra.
“Estava muito claro que, se não houvesse uma solução para esse problema, não teria como minha família e eu permanecermos na terra”, lembra Dijkstra. “Eu queria continuar aqui, o lugar para onde minha família veio ao migrar da Holanda. Então comecei a pesquisar, fui aos Estados Unidos e lá descobri o caminho do plantio direto, que possibilitou continuar a produção. Uma solução que mudou do dia para a noite a minha perspectiva de futuro”, revela.
Antes do plantio direto, os métodos de manejo dos produtores brasileiros seguiam os modelos europeus, de revirar a terra antes de cada semeadura, o que facilita a erosão. “Quando comecei a adotar o sistema do plantio direto, me chamaram de louco, diziam que eu ia quebrar. Eu sempre digo da importância de alguém para conversar, trocar ideias e ter embasamento científico. Tudo isso ajuda muito”, aconselha Dijkstra, lembrando de Manoel Pereira (Nono) e Herbert Bartz, outros produtores do Paraná fundamentais para propor e espalhar esse modelo de plantio.
Este mar está para… soja
A soja chegou no Brasil no século XIX, mas somente a partir do século XX que ganhou espaço no Rio Grande do Sul. Primeiro, no meio do milho, com variedades vindas dos Estados Unidos, de áreas com latitudes parecidas com as do Brasil – só que no Hemisfério Norte. Com o passar do tempo, o grão foi ganhando cada vez mais importância. De acordo com o pesquisador Amélio Dallagnol, da Embrapa Soja, em Londrina, no Norte do Paraná, 1949 foi o primeiro ano em que o Brasil passou a constar nas estatísticas como exportador da oleaginosa – com 25 mil toneladas. Chegou nas 100 mil toneladas no ano seguinte e passou a 200 mil na década de 1960. A marca de 1 milhão de toneladas ocorreu no início dos anos 1970. Até então, a expansão da oleaginosa no país ocorria bem, mas como se fosse rio acima. Crescia, é verdade, porém num ritmo diferente do que estava prestes a acontecer com uma mudança importante nos rumos dessa corrente. E tudo por causa de um peixe. “Em meados dos anos 1970, a produção de soja explodiu e as exportações passaram das 15 milhões de toneladas em 1979. A principal razão estava na necessidade de matéria prima para a produção de ração, destinada à engorda de animais.
Até então, a ração tinha como fonte de proteína, principalmente, a farinha de peixe, feita com a anchova, espécie abundante na costa do Peru e que, de uma hora para outra, desapareceu. Qual era a outra fonte importante de proteína que servia ao mesmo propósito? A soja”, conta Dallagnol.
Claro, o pesquisador aponta também outros fatores que influenciaram na explosão da soja como, por exemplo, a queda na produção de grãos na ex-União Soviética e na China, na época. Ainda, incentivos fiscais aos produtores de trigo da região Sul, que no verão usavam as mesmas áreas e equipamentos para plantar soja.
Mas o que realmente fez a diferença para que ocorresse um crescimento sustentável da soja foi a ponta da produção, como resposta à maior demanda. E nesse sentido, sem dúvida, a diferença esteve na ciência. Aqui, mais uma vez, o Paraná ocupou um papel de protagonista, com o trabalho principalmente do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), fundado em 1972, e, mais tarde, da Embrapa Soja, fundada em 1975.
O “pai da soja” no Brasil
Voltando à história, com a explosão do preço da soja nos anos 1970, o valor da terra também registrou um salto, praticamente inviabilizando a compra de áreas mecanizáveis nos três Estados do Sul. Num primeiro momento, com a soja dos Estados Unidos sendo plantada no Sul, o Paraná e partes do Mato Grosso do Sul e de São Paulo eram o máximo “para cima” onde era possível ter soja no Brasil.
Na época, as instituições de pesquisa paranaenses, assim como outras espalhadas pelo Brasil, foram fundamentais no desenvolvimento de variedades de soja que pudessem se adaptar a regiões mais ao Norte, em especial o Centro- -Oeste. Esses milhares de pesquisadores envolvidos com o trabalho de seleção e melhoria genética no país são os grandes responsáveis pela possibilidade de plantar oleaginosa do Oiapoque ao Chuí, os extremos do país.
Nesse ponto, o pesquisador Romeu Kiihl, que atuou no Iapar e na Embrapa, ganhou o reconhecimento da cadeia produtiva como o “pai da soja” no Brasil. Nos anos 1960, Kiihl foi aos Estados Unidos estudar com Edgar Hartwig, um dos maiores nomes de todos os tempos na pesquisa da oleaginosa. “Ele é considerado o pai da soja no Sul dos EUA, que até então era plantada somente mais ao Norte. Ele quem iniciou essa transição para menores latitudes e, em 1966, eu fui para lá. Tive um treinamento muito bom, que me mostrou a importância do fotoperiodismo (duração dos dias), do florescimento influenciado por isso na adaptação da soja nas várias latitudes”, recorda.
Em 1974, Kiihl, que trabalhava no interior de São Paulo, se mudou para o Paraná. Primeiro, atuou no Iapar, até 1978. Depois, na Embrapa Soja, onde seguiu até se aposentar e, posteriormente, atuar na empresa Tropical Melhoramento e Genética (TMG). “Na Embrapa, nós fizemos um sistema de seleção da soja para o Brasil inteiro, usando combinações de época de plantio. Então, por exemplo, para selecionar para o Nordeste, plantávamos entre 10 e 20 de setembro. Para selecionar para o Brasil Central, semeava ao redor de 10 de outubro. Quando selecionava para o Sul, era a partir de 15 de outubro. Todo esse material foi selecionado aqui em Londrina”, revela.
Novos “plantios diretos” no forno
Uma prova de que os produtores do Paraná seguem se aperfeiçoando constantemente em alinhamento com a ciência está na procura dos cursos do SENAR-PR. Um dos mais requisitados nas últimas safras é o “Manejo Integrado de Pragas (MIP) na Soja”. No ciclo 2018/19 foram 43 turmas, contra apenas 18 na temporada 2016/17. A iniciativa promoveu economia de 55%, em média, no número de aplicações de inseticidas, o que ajudou na redução dos custos de produção.
Além do MIP, há tecnologias disponíveis aos produtores na área de Manejo Integrado de Doenças (MID) e Manejo Integrado de Plantas Daninhas (MIPD). A ideia, nos três, é avaliar quando pragas, doenças e plantas daninhas começam a causar danos financeiros que disparam o gatilho da necessidade de controle, seja com agroquímicos, produtos biológicos ou outras tecnologias.
Ainda, muitas pessoas têm a visão de que essas ferramentas são viáveis apenas em áreas pequenas. Essa percepção tornaria impossível esses manejos se espalharem para outros lugares do Brasil, como o Centro-Oeste, formado em sua maioria por grandes propriedades.
Mas a nova geração de produtores rurais paranaenses demonstra que não é bem assim. Richard Dijkstra, filho de Franke, está à frente da agricultura da propriedade da família, nos Campos Gerais. Nos mais de 1,2 mil hectares, ele aplica MIP, MID e MIPD no cultivo da soja. “Em 2013, todo mundo ficou assustado com a Helicoverpa. Eu estava monitorando e via uma lagarta e quatro ou cinco inimigos naturais. Por isso, fui segurando a pulverização. Houve necessidade de entrar com controle mesmo lá no fim de janeiro, quando os vizinhos já tinham feito três aplicações. Claro, é preciso ter um monitoramento rigoroso, uma organização diferente, mas é totalmente possível”, compartilha Richard.
PR: protagonista em encarar desafios
Plantio direto e desenvolvimento de variedades, sem dúvida, são aspectos que foram cruciais para se formar a teia do agronegócio brasileiro atual, na qual todos os caminhos levam à soja. E, o Paraná teve um papel de suma importância. E mais do que isso, produtores do Estado, assim como catarinenses e gaúchos, também foram em boa parte responsáveis por levar conhecimento, infraestrutura e capital ao Centro-Oeste, na onda de migração ocorrida a partir do boom da soja nos anos 1970. A região onde fica o Mato Grosso é hoje maior produtora do grão no Brasil, com mais de 30 milhões de toneladas a cada safra.
Essas conquistas representam avanços que muitas vezes caem num certo esquecimento de sua relevância pela repetição ano após ano. O plantio direto, por exemplo, na visão do pesquisador Alvadi Antonio Balbinot Junior, da Embrapa Soja, representa uma economia gigantesca em combustível e mão de obra. Afinal, o sistema dispensa gradear, escarificar e/ou subsolar o solo o tempo todo. “Houve benefícios ambientais pela redução da erosão e o carregamento de sedimentos pela água. O custo de produção com máquinas e óleo diesel despencou, servindo de motivador para possibilitar o aumento do sistema de soja e milho segunda safra em larga escala”, enumera.
E como referência na produção e desenvolvimento científico em cima da soja, o Paraná também ocupa o protagonismo na proposição de soluções para os desafios atuais à cultura. “Mesmo aplicando o sistema de plantio direto, fundamental em condições tropicais e subtropicais, muitos produtores precisam aprimorar seus manejos nas propriedades rurais. Há que se manter a atenção para promover a manutenção e/ou o aumento de matéria orgânica na terra, ter uma cobertura de solo suficiente, promover uma diversidade biológica do solo e a rotação de culturas”, explica Balbinot.
A boa notícia, na leitura do pesquisador, é que o Paraná segue sendo um Estado diferenciado na busca pelo aprimoramento constante. “O agricultor paranaense é um empreendedor por natureza, que tenta sempre melhorar. No Paraná existe a vantagem do associativismo, do sistema cooperativista, instituições estaduais representativas muito fortes, um ambiente próprio para uma profusão de tecnologias e conhecimentos que servem para aprimorar sempre os sistemas produtivos”, avalia.
Soja: uma trajetória de conquistas e desafios – Por Ana Paula Kowalski
O Paraná o segundo maior produtor de soja do país, mas essa marca está longe de ser pequena. A produção de soja paranaense é equivalente à de países inteiros, superada apenas por quatro dos maiores produtores do mundo.
Esses números impressionantes só foram conquistados com o trabalho de aprimoramento em cada elo da cadeia produtiva. Com esse objetivo comum de se tornar cada vez mais eficiente, nos últimos 10 anos, a produção aumentou em 64%.
Os programas de melhoramento genético foram cruciais, com a obtenção de variedades pertencentes a grupos de maturação mais precoce, de crescimento indeterminado, tolerantes à herbicida e resistente à pragas e doenças.
Por outro lado, a migração do plantio de milho para a segunda safra também foi crucial para o aumento da área de soja. A demanda crescente da China, cujo crescimento foi de 69% de 2009 a 2019, também impulsionou a produção.
Todos estes fatores permitiram a distribuição do cultivo em praticamente todo o Estado, mesmo com a diversidade de condições edafoclimáticas existente. De acordo com análise da Embrapa, o aumento da área cultivada ocorreu nas regiões de temperatura mais amena (clima Cfb), que é justamente o mais favorável ao desenvolvimento da cultura.
Hoje, há muitas frentes de atuação para a melhoria constante em todas as fases de produção, processamento e transporte dos grãos. Os maiores desafios, nesse sentido, estão na aposta continua no aprimoramento e aplicação de técnicas de manejo, buscando manter a estabilidade da produção ao longo das safras, mitigando especialmente os efeitos do estresse hídrico sobre a cultura.
E a erosão, acabou?
Solo e água são os bens mais preciosos de qualquer produtor rural. O plantio direto é um aliado que ajuda, mas não é suficiente para resolver todos os problemas da erosão. Essa é uma batalha que exige atenção constante, pois, de acordo com cálculos do Iapar, o prejuízo com a erosão se aproxima de R$ 1 bilhão por ano no Paraná.
Uma das principais frentes para reduzir esse processo está no Programa Integrado de Conservação de Solo e Água do Paraná (Prosolo), que tem o apoio de diversas entidades público e privadas ligadas ao agronegócio estadual, inclusive do Sistema FAEP/SENAR-PR.
Entre os principais objetivos do programa está a promoção da consciência de produtores rurais de se retomar as boas práticas agrícolas, como o plantio direto, a adoção de curvas de nível, terraceamento, entre outras técnicas. Para isso, o Prosolo promove a formação de profissionais que auxiliam os produtores na elaboração de planos de conservação de solo e água nas propriedades.
Outra frente importante é o apoio financeiro à pesquisa científica aplicada ao tema, por meio de uma entidade especialmente criada para isso: a Rede Paranaense de Agropesquisa e Formação Aplicada, que envolve 19 instituições, entre universidades públicas e privadas, além de centros de pesquisa.
Não há dúvida de que a soja continuará sendo o carro-chefe do império brasileiro do agronegócio, país que cresce dia após dia para fornecer alimentos de qualidade e com segurança ao mundo. E se todos os caminhos do agro levam à soja, no Paraná todos os caminhos da soja levam à ciência. “Sem conhecimento, informação, embasamento, pesquisa e tecnologia, não se vai a lugar nenhum. Precisamos valorizar essas pessoas que trabalham com paixão, com motivação”, sintetiza o pioneiro Franke Dijkstra.
Fonte: Faep