A racionalidade impera na construção do conhecimento e na formulação das subjetividades dos indivíduos há pelos três séculos, de modo que a validade da argumentação é pautada pelo discurso racional, com embasamento dito científico. Apesar disso, a pseudocientificidade por vezes dá suas caras, inclusive no mundo jurídico, pois a economia e o patriarcado detém prerrogativa de se sobrepor à verdade quando conveniente.
Ao olhar para o passado, encontram-se histórias mitológicas como a de Medeia, a esposa repudiada e vingativa, a qual moldou o estereótipo das mulheres divorciadas (constantemente julgadas pela sociedade e, por algum tempo, até pelo direito pelo “fracasso” do casamento). Há algumas décadas, o psiquiatra norte-americano Richard Gardner propôs a teoria da síndrome da alienação parental, em que o genitor guardião (geralmente a mãe) “programaria o filho para odiar o genitor sem qualquer justificativa” e esquematizou mães-medeias que usam os filhos como instrumento de vingança contra o pai. Mais uma culpa atribuída às mães…
No Brasil, tal tese foi acolhida há 14 anos, por meio de uma lei feita à velocidade da luz, sem grande discussão popular e o suposto instrumento de proteção aos menores deslegitimou a palavra de mulheres e crianças nos tribunais há mais de uma década, além de ceifar vidas de menores ao colocá-los sob os cuidados de pais agressores e abusadores. A aplicação dessa norma vem sendo contestada internacionalmente, sendo que vários países revogaram disposições legais similares e o próprio Brasil já reconheceu os prejuízos da aplicação da lei de alienação parental, com a violação de direitos humanos.
Tornou-se a defesa básica de qualquer genitor que seja denunciado pela prática de abuso contra os filhos menores, descredibilizando a palavra da vítima, mas principalmente de quem a representa e para quem a vítima confia relatar sobre as violências sofridas. Embora a lei possa ser aplicada independentemente de gênero, ela recai massivamente sobre as mulheres e aplicação da punição sobre elas é desproporcionalmente maior, desconsiderando a violência estrutural de gênero que se intensifica no país. Os dados revelam a existência mesmo é de “Medeios”, visto que geralmente são os homens que, inconformados com o fim do relacionamento, comentem desde stalking até feminicídio, mas a crença popular sobre a figura feminina está arraigada inclusive no judiciário (ainda majoritariamente masculino, especialmente nos tribunais). Além disso, as pesquisas apontam que em quase 70% dos casos de abuso sexual contra menores, o agressor é o próprio pai ou o padrasto. A violência ocorre dentro de casa e as vítimas por vezes remanescem caladas pelo medo.
Projetos de lei que visam à revogação dessa lei estão paralisados nas Casas Legislativas há meses, enquanto crianças são vitimadas por tal lei. Mesmo nos casos de condutas manipuladoras maternas que usam os filhos como instrumentos, o arcabouço jurídico de proteção é vasto, desde a Constituição Federal até o Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa lei não tem fundamento racional e favorece a violação de direitos de menores, não há mais cabimento para sua continuação, sequer para sua inclusão no Código Civil, como se cogitou. Pelas mães enlutadas e caladas, pelas crianças violadas e descredibilizadas, é preciso garantir o direito de fala e de vida com dignidade. Havendo desconfiança é imperativo poder falar e denunciar para proteção dos menores.
Dra. Giovanna Back Franco – Professora universitária, advogada e doutoranda em Direito