Saúde

Pandemia agrava abismo educacional

Desafios da covid trouxeram à tona desigualdades e aumentaram distância entre ensino público e privado

Pandemia agrava abismo educacional

Reportagem: Cláudia Neis 

Curitiba – Dentre os muitos desafios trazidos pela pandemia da covid-19, a educação é um dos que ainda têm tirado o sono de pais, professores, gestores e profissionais ligados à área.

As discussões em torno da possibilidade de retomada das aulas presenciais continuam sem definição, mas uma coisa já é certa: o cenário atual vai aumentar ainda mais a distância entre a educação pública e a privada.

Professor da pós-graduação em Filosofia, Direitos Humanos e Políticas Públicas da PUC-PR, o filósofo Cesar Candiotto observa que a pandemia trouxe à tona as diferenças sociais que já existiam. “A escola, na educação básica e fundamental, em certo aspecto não deixa de ser um espelho da sociedade e as desigualdades que encontramos na educação são as mesmas derivadas das desigualdades socais econômicas que existem historicamente. O grande desafio sempre foi: como possibilitar o mínimo de escolaridade sem que as diferenças sociais e econômicas interfiram tanto? Com a chegada da pandemia, as desigualdades que nós já havíamos ‘normalizado’ mostraram o quão grande é a distância entre a educação pública e privada no nosso País”, ressalta Cesar.

Segundo ele, a diferença também foi vista no acesso à educação remota. “A desigualdade é gritante no aspecto do acesso. Começa pela internet, muitas famílias não têm condições de manter um plano de banda larga em casa e não há um suporte do Estado nesse sentido também. Além disso, quantas famílias têm aparelhos como celulares e computadores disponíveis para o uso desses alunos no estudo e no acompanhamento das aulas on-line? Se tem mais de um filho então fica ainda mais difícil. Outro fator é que tem pais trabalhando em home office, que estão usando esses aparelhos”.

Ele lembra que a organização e o acompanhamento dos pais, com base na disponibilidade que as famílias têm para se dedicar ao auxílio no estudo, também não é a mesma, assim como a preparação dos professores, das plataformas e do conteúdo oferecido. “Além da organização das famílias, é preciso lembrar que nenhuma instituição estava preparada para uma situação como está. E a possibilidade de readaptação, investimento e oferta de conteúdo de modo remoto nas instituições privadas é sem dúvida maior. Então a qualidade do ensino que já era diferente com os novos desafios ficou ainda mais evidente”, observa Cesar.

O professor mostra preocupação em relação à aprendizagem dos alunos. “É provável que o ensino público dê este ano como perdido na questão aprendizagem, já as escolas privadas, em termos de conteúdo, não tiveram tantas perdas assim, muitas escolas, inclusive, já conjugavam a educação presencial com a digital e conseguiram manter uma aprendizagem razoável. É uma questão muito ampla e que deveria ter sido norteada lá no início pelo governo federal e seguida pelos dois modelos, mas, como a responsabilidade ficou para estados e municípios, a diferença é muito grande, pois cada um administra da forma como é possível”, lamenta.

Educação superior

Na educação superior, Cesar também observa diferenças. “Muitas universidades privadas já vinham utilizando ferramentas digitais de conteúdo conjugando atividades presenciais e remotas. No ensino público, isso é muito mais raro e lento. Na PUC-PR, por exemplo, não tivemos prejuízo em termos de conteúdo. Em uma semana a universidade conseguiu transferir o ensino de maneira síncrona todo para o digital, já universidades públicas têm aderido somente agora à modalidade”, compara.

Aulas presenciais X ano letivo

Para o professor e filósofo Cesar Candiotto, o governo deve descartar o retorno das atividades presenciais em 2020, tirando, assim, a expectativa e a ansiedade das famílias. “Com base nas constatações sanitárias, é complicado o retorno em 2020, causaria muito mais transtorno, complicação, medo e risco para famílias, educadores e servidores. Não há segurança até que não haja uma vacina que comprovadamente imunize. Essa situação de fixar datas de retorno geram insegurança e ansiedade. Não há estrutura física nem mesmo profissionais para se retomar um ensino presencial com segurança e seguindo os protocolos”, enumera.

O filósofo ainda provoca: “Diante desse cenário, podemos nos questionar: qual a capacidade que os governantes têm de lidar com situações excepcionais? Nenhuma, a incapacidade é gritante”.

A educação pode transformar

Apesar das dificuldades e dos riscos já identificados, o filósofo Cesar Candiotto ressalta a importância da educação presencial, pois a função da escola vai além do ensino. “A escola é uma das ferramentas de democratização e convivência. Então, mesmo que haja uma introdução maior da educação por meio digital, o presencial não deve ser substituído, pois há uma carência de convivência nos alunos, há a necessidade do engajamento, de se ocupar um lugar físico… Além disso, a educação tem o poder de transformar as realidades atuais. Então, se houver maior atenção sobre ela, mais as desigualdades serão superadas”.

Cesar alerta para outro problema iminente: diante da crise econômica, deve haver uma migração grande de alunos do ensino privado para o público. Contudo, ele vê um lado positivo nesse cenário. “Com a migração de mais estudantes para o ensino público, pode ser que haja uma maior cobrança desses pais pela qualidade no ensino e isso faça com que haja uma mudança. E, fortalecendo-se a escola pública, consequentemente a privada precisa ser ainda mais aprimorada, o que elevaria os níveis da educação brasileira como um todo”.