Aborto

Deputados com pressa…… e a vida também

Paraná reforça atendimento materno-infantil em vários hospitais.  -  Foto: Venilton Küchler/Arquivo ANPr
Paraná reforça atendimento materno-infantil em vários hospitais. - Foto: Venilton Küchler/Arquivo ANPr

Brasília – Ao ‘pé da letra’ o aborto é a interrupção de uma gravidez resultante da remoção de um feto ou embrião. No Brasil, o processo é autorizado apenas em casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Em um país de maioria absoluta cristã, o assunto é polêmico e voltou ao centro do debate na última semana, depois que a Câmara dos Deputados aprovou a urgência de votação para um projeto de lei que equipara ao crime de homicídio o aborto realizado após 22 semanas de gestação e com viabilidade do feto, mesmo quando a mulher grávida tenha sido vítima de estupro.
Esta é mais uma das medidas de enfrentamento ao STF (Supremo Tribunal Federal), depois que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu uma determinação do CFM (Conselho Federal de Medicina) que proíbe o emprego de uma técnica em caso de abortos legais. Além da PL do abordo, a PEC das Drogas também avançou, trazendo um ‘gosto amargo’ ao Governo. Parece que os conservadores estão com pressa.

Urgência
A votação para o regime de urgência aconteceu nesta semana de modo simbólico e sem que o nome do projeto fosse citado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Alguns parlamentares sequer perceberam o que estava sendo definido. A votação de urgência acelera a tramitação do projeto. Com a urgência aprovada, a matéria é analisada diretamente no plenário, sem precisar passar antes por discussões em comissões temáticas da Câmara. Houve reclamações, sobretudo do PSOL, que é contrário à iniciativa. A expectativa do autor da proposta, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), e do presidente da FPE, Eli Borges (PL-TO), é que o mérito seja votado nesta semana.
Lira não justificou pautar o requerimento de urgência do projeto como argumento mais sólido. “Nada é reação a nada. A bancada evangélica, cristã, católica tem essa pauta antiaborto na Casa. Não é novidade para ninguém. Eu apenas comuniquei no colégio de líderes que havia sido feito um pedido de votação de urgência de um projeto para se discutir o tema”, disse o presidente da Câmara a jornalistas. O projeto tem o apoio da FPA (Frente Parlamentar Agropecuária), da FPE (Frente Parlamentar Evangélica) e da “Bancada da Bala”, três dos grupos mais conservadores do Legislativo brasileiro.

Entenda
Essa é mais uma frente de confronto entre a ala conservadora do Congresso Nacional contra o STF. Em maio, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes determinou a suspensão da resolução do CFM que proibia médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas resultantes de estupro. A técnica, feita em casos de aborto legal, consiste na injeção de uma substância que provoca a morte do feto para que depois ele seja retirado do útero da mulher. A resolução dificulta a interrupção da gestação, já que o método é considerado essencial para o procedimento.
O CFM entrou com recurso e afirmou que o processo deveria ter sido distribuído ao ministro Edson Fachin, que já é relator de uma ação sobre o aborto legal e, na avaliação da entidade, tem preferência para julgar o caso. O presidente da bancada evangélica, Eli Borges (PL-TO), disse que se encontrou com Lira e vê que é uma pauta para ser resolvida com “urgência”, em resposta ao STF. “É uma pauta que tem que ser resolvida com urgência pela decisão monocrática de Alexandre de Moraes, que faz um contraponto à decisão do Conselho Federal de Medicina, houve uma compreensão dele e dos líderes que temos que resolver isso no Legislativo, até porque esse é o foro ideal para resolver isso”, afirmou Eli. “Esse Parlamento é conservador.”
“Quando os médicos decidem, por que o Congresso tem que obrigar, por que o STF tem que obrigar? Aqui vai imperar o bom senso”, afirmou a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), uma das principais articuladoras da iniciativa. “Tem partido que quer matar bebê? Em outros assuntos, a gente até senta para negociar. Com relação à vida, não tem concessão”, disse Damares. Ela crê que a proposta deve tramitar sem demais problemas e que o Centrão endossará a proposta encabeçada por bolsonaristas. “Chegando aqui (no Senado), vai ser imediata (a entrada do projeto em pauta). Eu já até sugeri obstrução se não passar logo”, concluiu.

Fragilizado
O governo federal ficou fragilizado após as duas pautas conservadoras avançarem no Congresso: a PL do aborto e a PEC das drogas. A Câmara aprovou a tramitação de um projeto de lei que propõe a equiparação do aborto ao homicídio. A votação para acelerar a tramitação foi realizada de forma expressa, durando apenas 23 segundos, e apenas o PCdoB e o PSOL orientaram voto contrário. O PT, partido do presidente Lula, liberou a bancada. Já a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara aprovou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que busca a criminalização do porte e da posse de drogas em qualquer quantidade. A decisão, tomada por uma maioria de 47 votos a favor contra 17. O objetivo é inserir a criminalização diretamente no texto constitucional, especificamente no artigo que aborda os direitos e garantias individuais, conforme explicado pelo relator da PEC, o deputado Ricardo Sales (PL-SP). Com receio de perder popularidade, o Palácio do Planalto preferiu não comprar briga com os setores mais conservadores. Além disso, opositores usaram as votações para “emparedar” o governo.

Progressistas
Setores progressistas ficaram indignados com o projeto de lei sobre o aborto, uma mudança que gerou controvérsia devido à severidade da pena proposta, que seria maior do que a pena máxima para estupradores, atualmente fixada em até dez anos. A aprovação da urgência do projeto gerou reações diversas entre os parlamentares. Membros da base do governo e de partidos de esquerda, como PSOL, PT, PCdoB e PSB, manifestaram-se contra a rapidez da aprovação e prometeram criar obstáculos para a continuidade da tramitação. A medida também foi vista como um aceno de Arthur Lira à bancada religiosa, em especial à bancada evangélica.

Drogas
Já a discussão em torno da PEC das Drogas revelou uma clara divisão entre os parlamentares. Críticos, como o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), apontaram para o que consideram uma hipocrisia na medida, contrastando a criminalização do porte de drogas com a aceitação social de outras substâncias, como o álcool. Em contrapartida, defensores da PEC, como o próprio relator Sales, argumentam que a criminalização é necessária para combater o ciclo de financiamento do tráfico e outros crimes associados ao uso de drogas, defendendo uma legislação mais rigorosa como ferramenta de combate a essas atividades ilícitas. Enquanto isso, o STF mantém sua própria discussão sobre a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, com os ministros divididos sobre a questão. A análise do tema pelo Supremo foi pausada em março, após um pedido de vista pelo ministro Dias Toffoli, e ainda não foi retomada.

Senado
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendeu que o crime de aborto não possa ser igualado ao de homicídio. Pacheco evitou se posicionar de forma concreta sobre o projeto, mas se posicionou sobre o assunto de forma geral. “O aborto é naturalmente diferente do homicídio, há diferença evidente entre matar alguém que nasce com vida e a morte de um feto. São duas coisas diferentes. São bens jurídicos parecidos, mas são situações diferentes”, disse o presidente do Senado. Pacheco afirmou ainda que um projeto como esse em análise na Câmara “jamais iria direto ao plenário do Senado, iria às comissões próprias”.


Projeto prevê pena rigorosa
Caso a matéria seja aprovada, o aborto nos casos em que a gestação ultrapassar 22 semanas e houver viabilidade do feto passa a ser homicídio simples. O Código Penal determina atualmente prisão de um a três anos para quem realiza aborto fora dos casos previstos em lei. Para homicídio simples, a pena é de seis a 20 anos de reclusão. “O juiz poderá mitigar a pena, conforme o exigirem as circunstâncias individuais de cada caso, ou poderá até mesmo deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”, diz um trecho do projeto de lei.
O projeto faz parte da chamada “pauta de costumes” capitaneada pela oposição no Congresso e desagrada ao governo Lula e sua base de apoio de esquerda. A aprovação do texto seria mais um revés para o Palácio do Planalto dias após a sessão de análise de vetos que gerou uma série de derrotas do Executivo. Temeroso do revés, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), já se afastava da discussão no dia anterior à votação. “Isso não é assunto de governo”, disse.

Box 02

O que diz a lei atual
Atualmente, são autorizadas três formas de aborto, segundo a legislação brasileira em vigor: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, a saúde da mãe prevalece sobre a do feto; gestação resultado de estupro é prevista em lei, caso a mãe não queira prosseguir com a gravidez, independentemente da idade gestacional; gravidez de feto anencefálico, um tipo de malformação fetal que impede o desenvolvimento do cérebro.
Qualquer gestação interrompida que não se enquadre em nenhuma dessas situações prevê punições penais. Se a mulher provocar um aborto ou autorizá-lo, a pena é, atualmente, de até três anos. Já em uma situação que outra pessoa provoque o aborto sem o consentimento da gestante, a pena pode chegar a dez anos de prisão em regime fechado.