RIO – Segundo dados mundiais revelados pela consultoria Boston Consulting Group, uma menina que se forma no ensino médio tem, em média, 35% de probabilidade de seguir uma graduação em área científica, 18% de chance de se formar, 8% de fazer um mestrado e 2% de se tornar uma doutora em ciência. Para os homens, estes números são respectivamente 77%, 37%, 19% e 6%. No Brasil, a bióloga Fernanda Werneck, de 35 anos, conseguiu destoar das estatísticas e terá sua trajetória profissional reconhecida por um prêmio internacional para mulheres cientistas, no próximo dia 21, em Paris. Links mulheres e ciência
O Rising Talents, do programa Women in Science, da L’Oreal, premia a cada ano 15 jovens cientistas mulheres de todas as regiões do mundo. Este será o segundo prêmio recebido por Fernanda através do Women in Science ? em 2016, ela foi laureada também pelo Para Mulheres na Ciência, que tem parceria com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciência.
Com graduação e mestrado pela Universidade de Brasília (UnB), além de um doutorado nos Estados Unidos, pela Brigham Young University, a goiana que cresceu em Brasília desenvolve uma pesquisa a longo prazo no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), onde é pesquisadora. Nele, ela busca entender a adaptação de répteis, especialmente lagartos, às mudanças climáticas, em colaboração com diversos cientistas do Brasil e do exterior. Diretamente de Manaus, onde trabalha, Fernanda conversou com O GLOBO sobre sua trajetória profissional e pessoal ? e como isto muda sendo mulher.
A discussão sobre a desigualdade de gênero nas profissões passa muitas vezes pela própria escolha profisisonal que homens e mulheres acabam decidindo ainda na escola. Como foi sua experiência?
Para mim, foi muito natural, sempre gostei muito de ciências e biologia. Tive todo apoio em casa, felizmente, porque a gente sabe que muitas vezes, dentro de casa, tem o estigma das mulheres seguirem carreiras mais sociais e humanas, e os meninos para as exatas. Fiz graduação em ciências biológicas, onde participei da iniciação científica durante todos os anos. Segui para o mestrado e, no meio dele, engravidei da Iara.
Como é conciliar a maternidade com a vida acadêmica?
A carreira científica não é fácil. Exige muitas horas, muitas viagens. Muitas vezes não conseguimos acomodar com uma rotina. Tenho a sorte de ter uma família que me ajuda muito, inclusive porque o meu marido é cientista e biólogo também. E nosso trabalho exige a ida a campo, muitas vezes onde não tem comunicação, então a gente reveza para cuidar dela. Hoje, minha filha tem 11 anos.
Mas vejo muitas colegas que têm mais dificuldade de conciliar a maternidade e a carreira do que eu tive, porque às vezes a maternidade veio em um momento da carreira que demandava muito, ou às vezes a gravidez foi mais delicada…
Você acha que, na sua trajetória profissional, algo foi diferente porque você é mulher?
Quando digo que não tive muitas intempéries, me refiro ao meu núcleo mais direto, o da minha família, do meu orientador… Mas eu cheguei a ouvir algumas coisas na época que eu não entendia que pudesse estar relacionada ao gênero. Achava que era pessoal. Por exemplo: “Ah, esse projeto é muito audacioso, você não vai conseguir fazer isso…”, ou pessoas falando que eu não poderia ter escrito aquele trabalho sozinha. Hoje imagino que dificilmente um colega teria ouvido este tipo de coisa.
Dentro das ciências biológicas, a diferença no acesso entre meninos e meninas não é tão grande. Mas conforme a carreira proguide, isso se inverte. No mestrado, no doutorado, alguma coisa acontece que as mulheres não proguidem tanto na carreira. Se você vai olhar o pós-doutorado ou posições efetivas, há muito mais homens do que mulheres.
Pode nos contar um pouco sobre a sua pesquisa atual?
Estamos interessados em estudar a biodiversidade de répteis e anfíbios no ecótono, ou a transição, entre a Amazônia e Cerrado. Essa região coincide quase que em sua maioria com o arco do desmatamento. O objetivo principal é quantificar a sensibilidade dos lagartos, que dependem de fontes de calor externas para controlar sua temperatura interna, às mudanças climáticas. Estes animais são muito suscetíveis. A probabilidade é que as populações de lagartos passem por um colapso.
Como vocês fazem esta quantificação?
Tentamos entender a diversidade genética dessas populações usando tecnologias de sequenciamento ultramodernas, as chamadas next generation sequences, que olham várias regiões do genoma dos indivíduos. Buscamos então sinais de que a seleção do ambiente esteja determinando o perfil genético daquelas populações. Por exemplo, no Cerrado, parecem que as espécies toleram temperaturas mais altas do que aquelas no interior da Amazônia.
O aquecimento global já está sendo sentido nesta região que você estuda?
Hoje temos um montante de evidências científicas que nos permitem dizer que esta não é uma possibilidade, é um fato com o qual precisamos lidar. E não é só mudança na temperatura, é também uma mudança nos padrões de precipitação, no comprimento das estações, entre outras.
Hoje, qual é o grau de ameaça aos lagartos entre o Cerrado e a Amazônia?
Entre as causas principais, estão perda e fragmentação de habitat pelo desmatamento, mudanças climáticas e outros fatores, como espécies invasoras e comércio ilegal de algumas espécies. E estes fatores funcionam de maneira sinergética. Temos também a ameaça velada de não conhecer exatamente a distribuição das espécies. Acaba que estamos perdendo regiões ricas e espécies únicas que a gente não conhece.